quarta-feira, 29 de outubro de 2008
Carta a Um Amigo 7
O Criador não distribui por Pessoas, Materiais ou Líquidos os recursos do Universo, atribuindo-lhe um dono; não criou amos nem servos; criação perfeita, que só ao Divino pertence. Ao Homem foi dado aquele modo de pensar que nos leva a criar as diferenças, barreiras ou muros tão compactos que hoje em dia mais parece uma epidemia; antes fosse, e daquelas que, muito simplesmente o barbeiro das nossas aldeias encontrasse na sua horta, as ervas com que tem curado tanta gente e tivesse o diagnóstico mais fácil e das curas mais rápidas igual a tantos males que tem curado.; repara que se há algo em que fazemos o melhor que soubermos, seja distribuir um sorriso, uma palavra ou um pouco de pão que seja em benefício dos que nos rodeiam, até a luz que nos tira da sombra parece ter mais brilho, até os passos dados são passadas feitas com maior segurança, até o dormir aquele sono que o meu avô nos dizia quando o meu irmão mais novo estava a dormir; ele está a dormir o sono dos justos; isso mesmo é sentimento que vem e nem nos apercebemos, tal é o encanto interior de que estamos possuídos; serão fantasias que vêm desde a infância? Serão modos de perceber o quanto é grandioso, ver os acontecimentos tão contraditórios, ver as diferenças de pensamento, sinal, ao mesmo tempo do respeito que ainda vai existindo, se lhe chamarmos tolerância, e sinal de que nem tudo vai assim tão mal como se ouve dizer. A crítica só terá razão de existir se for feita no sentido construtivo do criticado Olhando para os acontecimentos que se passaram nestes dias que nos mantivermos afastados, olhando para os seus efeitos à escala planetária hoje chamada globalização, decerto vimos diferenças, algumas pontuais outras nem tanto, em todos os factos dos quais fomos observadores atentos.
Gostaria de ler a tua opinião, de saber descrito por Ti, naquele teu jeito, tão perfeito e tão sadio de descreveres os acontecimentos, com uma linguagem tão enlevada e tão rica em elementos, que descreves tudo na maior das perfeições; não te invejo o saber escrever; o saber não se inveja; adquire-se; nasce connosco; mas como sabes vou fazendo o melhor que sei, e sempre vou aprendendo, cada dia que leio o que escreves, e assim não tenho remorsos desta minha ignorância, nos modos de ver o mundo que nos rodeia. A tua opinião como digo, traz-me sempre mais um esclarecimento, é mais um saber que vai contrariar aquele ponto que ignorava ou que tinha mal formulado.
Só pelos caminhos da Luz fugirás aos abismos.
Carta a Um Amigo 6
Quero dizer-te que me sinto muito bem com as palavras que me mandaste, as quais, sabendo do valor das mesmas e da fonte inesgotável de saber de onde provêm, me incentivaram a que o meu rumo não fosse perturbado nestes acontecimentos dos últimos dias. Há sempre acontecimentos que nos marcam mais ou menos, mediante o impacto que provocam em nós. É concerteza dentro do quadro da Amizade que, o que nos surge de outrem tem sempre um valor e uma apreciação de carácter mais intimista, mais nos enleva ao que julgamos pertencer; pois assim sem julgamento estamos a ser apreciados, pelo nosso trato, pelo nosso trabalho e sobretudo pela existência de um elo que foi consolidado ao longo dos anos em que travamos conhecimento e fomos trocando correspondência, esta tão em desuso, e ao usarmos de tal privilégio, privilégio porque poucos a usam actualmente, estamos a deixar que escrito aquilo que realmente pensamos de nós, dos nossos que por laços familiares nos pertencem, do nosso país e do planeta em geral; motivo mais que suficiente par estarmos de bem connosco.
Se a Amizade é um frasco, quero que seja do tamanho do Planeta.
Há um tempo para tudo; vamos respeitar aquele tempo.
Carta a um Amigo 5
Eu sou Presença, perante Deus, que habita o meu corpo.
Carta a um Amigo 4
É verdade que uma revelação igual à que tenho para contar-te, não se enquadra naqueles contos, do “Abafa”, ou o da “Consoada”, pois eles serão sempre vivências de um tempo que não existiu a não ser na criação do Autor, e a terem existido, foram sempre mais do instinto irracional que, da natureza Humana. Também é verdade ao dizemos muitas vezes que o limite é o céu! Será verdade? O infinito aplicado nesta expressão tem o seu fundo de verdade? Também não sei. O meu pouco saber não me permite ir muito além do que aos Homens, naturalmente, lhes é concedido no reino dos saberes.
Dar-te-ei a resposta em uma das minhas próximas missivas; continuo à esperando novas Tuas.
Vive, aprecie, saboreia e medita em cada acto da tua vida; pode ser o último.
terça-feira, 28 de outubro de 2008
Carta a Um Amigo 3
Ao assinalarem um dia para Mãe ou Pai, estão a tirar a grandeza que diariamente deve estar presente em nossos corações, por termos a felicidade, de vivermos juntos de quem num acto de Amor nos gerou.
Não será necessário cada momento que passamos junto dos nossos progenitores, vivê-lo, festejá-lo e fazer desses momentos únicos, porque o são, momentos de amor junto de quem nos deu a vida?
Não foram umas quantas semanas que carregaram connosco no seu ventre para nos trazer ao mundo, dando-nos Vida; quantas vezes com sacrifícios tais, que só elas tiveram o privilégio, sim privilégio, de suportar; quantas dores tiveram ao longo do nosso crescimento, dentro do seu ventre.
Qual Árvore que dá seus frutos, assim a Mulher, é também uma Árvore de Vida; Quantas não tiveram de pagar com a própria Vida para que o milagre da vida se repetisse? Quantas não ficam com cicatrizes psíquicas ou físicas para toda a vida? Quantas noites sem dormir para que aquela criança, continuasse seu ritmo de crescimento, desconhecendo que alguém que a gerou lhe dá toda a Protecção e Amor?
Porque festejam o dia da Mãe, do Pai ou d...
Não será um negócio a nível mundial que se aproveita, usando o nome daqueles que nos são mais queridos, para nos cativar a despender por vezes o que faz falta para outras, essas sim, necessidades prementes? Quantos biliões são gastos, naqueles dias, geralmente no mais supérfluo para o nosso dia-a-dia, e vão engordar a conta dos proprietários das grandes cadeias comerciais.
Porque não criar um dia em que seja decretado em todo o Mundo o fim da violência; seja doméstica, seja entre tribos ou entre nações. Porque não fazer com aquele dia se repetisse ao longo de 365 ou 366 dias. Ah! As armas, os canhões, todo o belicismo existente, precisam de ser vendidos nem que seja a um País inimigo.
Porque nem todos podem ascender a ser ascetas, e porque já há poucas condições para que a prática de tal, possa ser cultivada; vivemos, sendo usados pelos mais diversos processos, e não avistamos a luz ao fundo do túnel, capaz de parar a máquina depradadora de todas as culturas; à qual chamam de progresso.
Porque hoje é dia de escrever a um Amigo; hoje sim, vou festejá-lo, endereçando toda a amizade que uma carta, cujas palavras de gratidão possa transportar, estreite os laços de Amizade que nos unem.
Meu Deus obrigado pelas janelas divinas que me deste, para ver e apreciar o divino que me rodeia e do qual faço parte.
Carta a um Amigo 2
Hoje vou falar-lhe de outras crianças que já foram meninos; diz o ditado: de velho se torna a moço. Este é daqueles dizeres populares que assenta em toda a sua plenitude na palavra escrita.
Não é preciso calcorrear muitas ruas ou vielas, seja de aldeia ou cidade, para vê-los sentados à soleira de sua porta, quando não é alugada ou de um filho; olhos postos no além, puxando pela memória para se lembrarem de algo bom que tiveram ou passaram num tempo longínquo, cheios de vida vencendo todos os obstáculos, em que a maior parte previam um futuro risonho.
Ou vê-los fechados quais bichos, tão Humanos e tão cheios de saber, dentro de, chamam-lhe “Casas de Repouso” ou como também lhe chamam armazém de velhos; termo repugnante, carregado de desprezo.
Muitos deles voltaram a ser crianças; só que agora, o carinho de uma Mãe que os gerou, não está presente, Amor Maternal; só elas sabem quanta dor e prazer custa trazer uma Vida ao mundo; só elas sabem o que significa Amor Verdadeiro; só elas sabem quanto custa transportar uma vida no Ventre; quanto ao Pai é-lhe dado o papel de ensinar os seus primeiros passos, dar-lhe aquele apoio e aquela força moral que tanto crescimento traz às crianças. Assim aquele grupo de Homens que voltaram a ser crianças, e cujos seus descendentes, uma grande parte deles, para não os suportarem, são colocados naquelas casas, muitas delas com grades parecendo prisões; quantas delas com fachada tão bonita e acompanhadas por pessoas que praticam a Fé, quanta hipocrisia, quanta maldade é feita aqueles, muitos deles, ajudaram a construir a riqueza dos que agora os maltratam.
Grupos de Pessoas com mais idade e maior nível cultural e formativo, têm criado Universidades para a dita Terceira Idade; Professores há que se disponibilizam para ensinar as suas matérias aquelas Pessoas, para quem a idade não conta, tal a vontade de viverem aprendendo, e, ao mesmo tempo, viverem felizes.
Vamos preparar-nos, para termos a grandeza de sairmos com Serenidade, e sermos recebidos com a Alegria Divina.
segunda-feira, 27 de outubro de 2008
Carta a Um Amigo 1
Vamos percorrer esse trilho de veredas, ruelas, avenidas e grandes lagos que o mesmo possui; vamos chamar ao que enfeita o exterior os jardins suspensos; quantas variedades, qualidades e formas de crescimento há neste conjunto; tantas, como seres humanos que existem à superfície do planeta; uns mais coloridos, outros mais lisos, outros mais curtos, ainda outros mais compridos e mais invulgares. Do sitio do Pavilhão do Conhecimento – Ciência Viva; tirei o seguinte: os pêlos têm 3 funções: isolam do calor ou do frio, protegem a pele quando o animal se desloca no seu meio e formam uma espécie de “radar” (sobretudo os pêlos da cauda e ao longo da coluna, à semelhança dos bigodes); se partirmos em direcção à máquina que bombeia o sangue para todos os circuitos, qual lago que alimenta milhares de rios dando-lhe Vida. Se formos para a parte que diz respeito ao que alimenta o corpo dando origem ao sangue para todo os nosso organismo ali temos outro mapa para nos orientar para uns lugares remotos, cuja importância em todos eles existe, claro, mas ali é mesmo vital o seu mau funcionamento.
Obra do Divino, uma das obras maravilhosas que o Criador nos deixou para usufruirmos de todo um Planeta que tão mal tratado foi que está a ficar cansado, doente e prestes, pois assim não aguentará muitas centenas de anos, a assistir, claro, quem cá estiver, à sua destruição. Continuando a desaparecer as espécies a um ritmo que tem sido observado ultimamente, terão as gerações vindouras motivos para nos culparem por aquilo que lhe legámos. O próprio corpo humano e todas as espécies, ou seja tudo o que existe no planeta virão a sofrer modificações das mais variadas no campo da genética.
O tal continente que acima se refere, tal como os outros geograficamente localizados e uma vez que se estão a deslocar à média de dois centímetros por ano, será o que mais virá a sofrer com todos os desequilíbrios que se vieram a manifestar. E a surdez de uns a ganância de outros e a ambição sem limites, que é apanágio em muitos cérebros, não pára um pouco para escutar a voz dos que estudam o comportamento do meio em que vivemos perante as ameaças diárias que lhes infligem.
Pelo seu comportamento, pelo prazer de viver e não olhando aos meios com que o faz, pela sua atitude perante toda uma Vida que se desejaria saudável, mas que os procedimentos o contradizem, asfixia-se todo um Paraíso que o Criador pôs à nossa disposição para uma Vida cheia de saúde, paz e alegria. Poderemos deixar a citação: por quem os sinos dobram.
Não são os holofotes do palco que te iluminam mas sim a Luz que tens de procurar dentro de Ti; ou caminharás para o abismo.
Jotabea
Um Grande Português - Agostinho da Silva
sábado, 25 de outubro de 2008
Desfiladeiro
Por outro lado, estão abandonando a Igreja muitos padres já formados, alguns com muito ano de devoção, alguns com altos graus eclesiásticos, o que confirma, para os agnósticos ou para os de outras correntes religiosas, cristãs ou não, que a Igreja falece e para os crentes na inspiração divina que o número de verdadeiros católicos é ainda menos do que se pensava porque, para que se mantenha a proporção exacta, não basta que os seminários vejam diminuída a sua frequência, é necessário também que saiam muitos dos sacerdotes que já existiam; acresce a esta reflexão, tanto para uma como para outra corrente, mas sobretudo para a segunda, que mais interesse tem de atender o que se passa, que muita gente deve ter no passado ido para a Igreja, para ser padre, muito mais por motivos económicos do que por irrefreável vocação; o seminário era uma escola barata ou gratuita, mantinha o aluno interno, o que aliviava igualmente o orçamento familiar, aqui pura imagem, porque os miseráveis não têm orçamento, têm apenas fome e desespero, e ainda dava às famílias humildes a certeza de que a missa nova lançava o seu menino na carreira do poder e que em breve o veriam nos palanques de festa ao lado das autoridades civis e militares, nem sequer naturalmente lhes passando pela cabeça o problema de se era esta ou não atitude cristã; ora, com os países lançados no caminho do desenvolvimento, outras perspectivas se abrem e novas economias, aliás ainda bem frouxas, incitam a carreiras novas; e aqui está porventura a palavra exacta: para muitos era a Igreja uma carreira, quando devia ser a renúncia a qualquer carreira, a não ser a que levasse à Cruz; mas sucedia aqui o que sucedia noutros tempos bem antigos, quando os exércitos eram de mercenários; tratava-se de um modo de vida, não de uma disposição para morrer.
Acresce a isto que uma crise institucional e doutrinal se veio somar a tudo; os adversários da Igreja se rejubilam, embora o possam aplaudir por conveniências políticas ou por convicção pessoal, com o facto de se discutir tão ardorosamente se padre deve ou não casar, como se casar fosse um dever, se pode ou não pode casar, como se alguma vez alguma lei tivesse proibido alguém de fazer alguma coisa, coitada da lei que apenas pune quem faz uma escolha diferente da que ela fez; ou com o facto de se discutir se um catecismo feito com aprovação do bispo é ou não é cristão, quando talvez se devesse discutir se afinal o Espírito Santo, que inspirou o bispo, não perceberá mais desses assuntos do que os leigos ou, se há opiniões diferentes de outros homens também inspirados, se não significa isso que o Espírito se deleita com a variedade de opiniões, ou até se será realmente cristão que haja catecismos, quando as autênticas certezas nunca vêm de fora, mas de dentro de nós nascem e crescem; ou com o facto de se discutir se o cristianismo é divino ou humano, se Deus está existindo, se o padre deve consolar os miseráveis ou protestar contra a miséria, como se ainda se pudesse duvidar de que o mundo é isto e aquilo, de que a Cristo, como homem, cumpria afirmar a vida, e, como Deus, morrer às mãos dos grandes, e de que, quanto a miséria, o que o padre devia fazer era consolar os cegos poderosos que não querem abrir os olhos e ver a luz, que bem precisam esses de misericórdia, e repetir uma e outra vez ao padre que nuvem pode, de vez em quando, tapar o Sol, mas que jamais o impedirá de nascer.
Talvez houvesse, quanto ao conjunto, que formular uma hipótese: a de que a Igreja está apenas atravessando uma garganta de serra, de que está somente sofrendo, como lhe compete, sua própria paixão, de que, crucificada, ressurgirá, não já para as limitações da terra mas para toda a amplidão dos céus, não já companheira dos Estados mas servidora dos homens e querendo não já somente uma sociedade justa, que isso o farão os homens, mesmo sem ela, mas uma sociedade de homens justos, isto é, santos; de homens que entendam a todo o homem e a todo o veja como irmão e até como irmão superior, qualquer que seja a raça ou o credo; que tenham qualquer problema material dos outros como sua pungente aflição de espírito; que possam dispensar o sinal exterior do sacramento por serem de sagrada estrutura; que se digam católicos, isto é, totais, por estarem dentro deles, com eles, o muçulmano e o budista; que se digam apostólicos por todos os dias, infatigáveis, se pregarem a si próprios que devem ser melhores do que são; que sejam romanos por quererem, alargando o ideal de Roma antiga, de que deveriam ser herdeiros os homens que falam português, que seja todo o homem cidadão do mundo: que passemos da província ao Universo.
Agostinho da Silva – Textos e Ensaios Filosóficos II
*«Desfiladeiro», Notícia, n.º 583, 6 de Fevereiro de 1971.
A difícil prova
Perante o que, em termos muito brandos, poderemos definir como a perplexidade das autoridades católicas, levanta-se a perplexidade dos fiéis e não deixam naturalmente de aparecer, nos que não são autoridade nem fiel, no público de outras religiões ou no agnóstico ou no indiferente, perguntas não sobre o passado da Igreja mas sobre o seu presente e, principalmente, sobre o seu futuro; para uns, talvez mais lidos em história e que se lembrem talvez de toda a luta contra as heterodoxias nos primeiros séculos de vida da Igreja ou da grande crise luterana do século XVI, trata-se de uma tempestade superável, a que, por adaptações, concessões e reformas, se irá seguir um patamar clássico de noções assentes e de procedimentos que não ponham problema algum; para outros, trata-se, e na maior parte das vezes, desejadamente, de uma crise final; incapaz de se adequar ao mundo novo que surge, ancilosada por hábitos que o repouso criou, travada por sua armadura de prestígios e pompas. O catolicismo desapareceria, como desapareceu a religião egípcia ou sumiram os cultos assírios, reduzir-se-ia a uma minoria sobrevivente como o budismo na Índia e o judaísmo em nosso mundo mais próximo, ou até mesmo seria apenas um caso, digamos local, de uma superação actual da religiosidade que tem sido característica humana.
Seja como for, tem a Igreja pela frente uma tarefa complicada, que seus membros mais conscientes e de maior fé verão como menos entregue ao talento, boa vontade ou habilidade de homens do que às inspirações de divindade ou de santidade que o corpo místico e o corpo prático souberam receber e seguir; como, segundo o povo, escreve Deus direito, mas por tortas linhas, poderão vir as soluções de formas muito diferentes daquelas que se estão pensando ou antevendo; parece, no entanto, que assentariam em duas bases, a de que podem perfeitamente ser dispensados da Igreja os que a ela foram por medo ou conveniência, que medo é, e a lembrança de que catolicismo, quer, etimologicamente, dizer universalismo e, portanto, um ecumenismo que se não importe apenas com cristãos, mas vá aos muçulmanos, aos animistas, aos budistas ou aos xintoístas, e, ouso dizê-lo, aos agnósticos e aos ateus, ensinando a todos fé na vida, que Deus é, esperança no futuro, que Deus já é, só que ocultamente a nossos limitados olhos, e uma caridade que se desprenda do material entregue esse, com melhores resultados, à economia e à política, e se debruce sobre os problemas espirituais do homem, compreendendo a todas as angústias e amparando a todos os desvios.
Parece, porém, que o mais grave de tudo não é a crise que possa haver dentro da Igreja, limitada afinal a alguns milhões de homens, mas a que, fora dela, há quanto a ela, e que abrange, essa, biliões de homens; em cada nação teoricamente cristã são muitos os que não acreditam mais na sinceridade da Igreja, apoiam sem discutir todos os que vão contra ou a deixam, e vêem todas as medidas de compreensão de novos tempos como simples habilidades políticas, destinadas a fundamentalmente conservarem o poder e manterem o lucro; fora das nações cristãs, os povos de Ásia ou África, que sentiram em sua carne o missionário que precedia o comerciante e o soldado, ou os povos da América, para os quais a Igreja esteve sempre ao lado do tirano local, igualmente olham consagrações ou visitas ou apoio à libertação como puro jogo estratégico de influência a guardar ou aumentar; o difícil para a Igreja, vai ser persuadir o mundo de que seu proceder é de real conversão, com arrependimento e bom propósito; confissão geral, penitência e comunhão dos santos, eis o que muitos reclamam, esperam e desejam, confiados na divindade da Igreja; que a Deus os restituiria, lançando-os pela única estrada em que plenamente podem ser homens: a de superar humanidade.
Agostinho da Silva – Textos e Ensaios Filosóficos II
*«A difícil Prova», Notícia», n.º 574, 5 de Dezembro de 1970
Alicerces da Paz
Creio ainda que, entendida a geometria para além das técnicas exigidas nos exames e que têm, pedagógica e espiritualmente, o mesmo valor de lavar bem a louça ou costurar bem ou, até, de saber latim, ela aparece como inteira e desejavelmente aplicável a tudo o que na vida se desenrola. Se, cartesianamente uma vez mais, a física moderna não é verdadeiramente outra coisa senão geometria, e cada dia chegando mais perto da tal geometria essencial, que só vai, toda ela, poder ser pensada e não imaginada ou representada, o que é necessário é que rapidamente entre a química, o que na essência já está feito, na categoria geométrica e logo após ela venha a biologia a libertar-se de princípios vitais mais fantasiosos que reais; e, ao contrário do que é de hábito supor-se, é exactamente quando a mais renitente, e porque mais complexa e mais atrasada das ciências, se tiver geometrizado que todas as tendências positivistas terão sido definitivamente derrubadas: porque pela sua liberdade essencial, pela sua fantasia, a geometria é inimiga de factos, de fenómenos e de leis, pelo menos do que até há pouco se entendia, em física, por lei.
O grande passo a dar é, porém, o da História. Ela é a nossa vida, ao passo que a outra é apenas o nosso saber; nenhuma física e nenhuma química têm criado as grandes melancolias; mas o tem a História, quando aparece como aquele sonho de loucos contado por um débil mental a que já tem sido comparada; o entendimento racional da História, nas suas origens, em todo o seu desenrolar e nos seus fins últimos, mostrará como toda ela vem, e em todas as suas características, de alguma vez ter suposto o homem que eram melhores os seu próprios planos do que os planos de Deus, de que era melhor mandar do que obedecer, de que, finalmente, valiam mais as suas pobres geometrias a três, quatro, cinco ou n dimensões do que a fundamental geometria divina, a geometria a dimensão alguma. A pobre ideia de que se podia, sem angústia e sem saudade, substituir pela música desenrolando-se no tempo a intemporal música divina. A História vai ser simples quando for entendida; o homem vai ser humilde quando entender a História; quando ela, para ser entendida, se tiver feito geometria.
O mais estranho, no entanto, é que muitos, mesmo sem essa geometrização que trará, pelo entender, a paz, tenham chegado já há muito à mesma ideia simples e fundamental de que é a raiz de tudo ter tido o homem uma visão de si próprio que não era uma visão em Deus, de se ter considerado o homem como um ser separável e separado de Deus. E o que mais tem perturbado tem sido exactamente que tem surgido a ideia e a prática em gente humilde, despida quase sempre de grande cultura e que parece muitas vezes mesmo um pouco inapta à apreensão do que já se tem conseguido avançar no caminho da explicação geométrica.
Foi este espanto dos racionais e dos cultos que fez supor a muitas filosofias que havia uma forma de conhecimento de carácter senão irracional pelo menos arracional, a que logo se deu o nome de intuitivo; quem parecia não ter partido de Euclides ou parecia não poder chegar a Euclides, mas ao mesmo tempo se adiantava aos caminhantes científicos, era logo por eles colocado na categoria dos intuitivos, como se não devêssemos aqui prosseguir na ideia de que, à boa maneira da filosofia chamada clássica, a intuição é ainda conhecimento racional, só que um conhecimento racional tão seguro e claro que não pode sofrer a menor espécie de dúvida. O que principalmente agravava as coisas era que os tais intuitivos se não limitavam aos exemplos, também clássicos, das propriedades intrínsecas dos triângulos; iam a assuntos muito mais difíceis e às vezes ainda bem longe da alçada dos sábios.
Por outro lado, havia uma lamentável tendência para que a intuição, isto é, uma inteligência mais aguda, mais penetrante e, digamos assim, mais longínqua, se manifestasse principalmente em mulheres e crianças, considerados desde sempre, numa cultura que tem sido de adultos e de homens, como de capacidade inferior; além de tudo, havia a tal inapetência para os caminhos longamente trilhados para a ciência: desprezavam-se os homens das botas de sete léguas porque eles não tinham interesse algum em percorrer, por miúdos centímetros, as estradas dos outros. Creio que uma grande e cómica surpresa aguarda em outra vida os que nesta foram suficientes e sábios: a de descobrir que eram apenas inteligentes, e às vezes mediocremente inteligentes, e que as mulheres, que tantas vezes desprezaram, se elevavam, sem esforço e sem orgulho, às regiões do génio; como vão descobrir que terem enviado seus filhos à escola apenas os atrasou na verdadeira cultura. Foram muito modestas, em todos os tempos, as femininistas quando defenderam que as mulheres eram tão inteligentes quanto os homens, porque na realidade o são mais; foram injustos os educadores quando defenderam que as crianças podem entender o mesmo que os adultos, porque na realidade podem entender mais. E se me pareceu sempre haver mais genial concentração na criança que brinca do que no sábio, não é menos verdade de que o facto de haver nas igrejas menos homens que mulheres me pareceu sempre um grande argumento quanto à verdade do catolicismo.
De qualquer modo, se vai ser um grande caminho para a paz o de, pelo paciente esforço dos menos inteligentes ou pela fulgurante chegada dos mais inteligentes, se entender a História do mundo e por ela a nossa posição no dito mundo, e se vai a Paz consistir fundamentalmente em, pela clarificação geométrica da vida, voltarem ao Pai todos os seus filhos pródigos, a grande força de avanço, o grande motor deste passar dos povos não está verdadeiramente nos que se deslocam, mas nos que de alguma forma vão participando do movimento, para que não falte companhia aos que marcham, mas na realidade já há muito chegaram.
São estes os que são desprezados e não se revoltam, os que obscuramente sabem e ninguém consulta, os que ficam anónimos nas grandes obras a que se ligam nomes alheios, principalmente os que sabem que o dever essencial consiste em, com êxito, com reconhecimento ou sem reconhecimento, com agradecimento ou sem agradecimento, ter fá na importância de sua posição, sobretudo na importância de aguentar calado e alegre a carga que vier, porventura achando-a sempre leve de mais, apesar de todo o sofrimento; os que têm esperança na redenção final do mundo e levarão o seu apagamento ao ponto de não dizerem aos outros o que sempre souberam; os que têm a bastante caridade para transferirem sua própria glória para os actos dos outros.
E se tivéssemos que nomear os que assim procedem; se tivéssemos que dizer quem, porque as estrelas estão dentro de si, se roja na poeira; se tivéssemos que apontar os melhores dos santos – veríamos que estranhamente coincide esta santidade com a radical inteligência de que há pouco falávamos. Temos santos entre nós e não os conhecemos porque nos atrapalha o participarem eles tão intimamente da nossa vida e, sobretudo, o tão frequentemente nos utilizarmos nós deles para a nossa vida, mas, se assim não fosse, já teríamos nós dado há muito tempo a mulheres e crianças o lugar que verdadeiramente merecem; e já teríamos entendido por que motivo tão facilmente Jesus se comovia ante a sua fragilidade e a sua miséria.
Agostinho da Silva – Textos e Ensaios Filosóficos II
*As Aproximações, Lisboa, Guimarães Editores, 1960.
Teocracia
Seja como for o que nos interessa para o caso presente é que nunca se apresenta, para estudar História, aquele que é provavelmente, além do gosto desportivo e desinteressado do querer saber como espectáculo e do outro, que apresentaríamos à religião e à essência mais íntima do teatro, de querer de algum modo tomar parte em toda a batalha, em todo o colectivo sacrifício das gerações passadas, aquele que é provavelmente o mais forte dos determinantes para que se faça recriação do que foi. Como se fazem encantamentos rituais para desassombrar casas, a História devia servir para isso mesmo, para, estudando-a, nos desassombrarmos do passado naquilo que ele já teve de superado. História para que o passado se estenda a uma luz do presente e para que possamos construir um futuro que, lógico com o que esteve para trás dele, marque, no entanto, um avanço. Direi mesmo, marque um progresso. Mas em que sentido um progresso? No único sentido em que a palavra pode ser tomada, quando se trata da aventura humana: no sentido de que se pretende para o homem cada vez maior liberdade para poder ser o que é na essência; por outras palavras, cada vez mais direito de cumprir o que é seu dever, seu único dever; repetindo o que disse já, tanta vez, e direi sempre: o dever de ser santo.
A verdade, porém, é que História, como nós a estudamos, não serve para nada disso. Quando muito, saímos das escolas secundárias e das escolas superiores achando da História aquilo a que chamamos os factos, o que é exactamente o mais incerto e o mais falível no conhecimento da História. Mas não existe no nosso espírito quando acabam de nos educar nem vestígio daquilo que poderíamos chamar uma teoria da História; nada se ordenou numa síntese geral. Nenhum de nós seria capaz de resumir em duas ou três frases toda a história universal que aprendeu. O mais grave, no entanto, é o seguinte: que tudo o que se estudou nos aparece como uma colecção de historietas sem real significado; ou então, como uma série de acontecimentos que só no passado tem sua razão de ser. Muitas vezes se julga que se estudou História como se deve estudar quando, por exemplo, o que já não é mau, se relacionarem acontecimentos, e se mostra como a Cruzada facilita a Comuna, como a batalha de Aljubarrota é um episódio da Guerra dos Cem anos ou com estão em íntimas relações o bloqueio holandês e a bandeira de preamento.
Aí mesmo, porém, a essência escapa. Não se trata já daquela reflexão mais subtil que liga, por um cristianismo fundamental, a Cruzada à Comuna, fazendo-as ver, não como dois movimentos adversos, mas como que dois degraus; do lado das diferenças e não das semelhanças, não se trata já de pôr nitidamente o que distingue Joana d’Arc de Nuno Álvares e de perceber como a Igreja pôde justificadamente condenar a primeira e não teve de levantar, quanto ao segundo, nenhum problema de heresia; como igualmente se não trata de ver porque razão, no fundo de tudo, o holandês civilizado, digamos assim, não deixa coisa alguma no Brasil, a não ser às vezes seu olho azeitonado no Nordeste, e o tal português preador lança seus fundamentos do que será muito possivelmente a base futura de um renascimento católico.
O que nos interessaria sobretudo na História seria dar conteúdo actual, ou melhor, conteúdo eterno ao que acaba por aparecer como um empoeirado, como um arqueológico episódio do passado. Reflexão que veio agora a propósito de alguma coisa de bem definido e de bem nítido, do que é talvez um problema fundamental do nosso tempo e de que, no entanto, todo o aluno que passou pelo curso secundário se recorda agora com olho ainda sonolento e memória mais sonolenta ainda, se é possível. Refiro-me àquelas lutas entre o Papado e o Império, que jogavam imperadores estranhamente vagos contra papas mais vagos ainda e de que surgia talvez como única visão mais nítida, porque se podia figurar como uma espécie de gravura, o episódio de Canossa. E, todavia, trata-se simplesmente do seguinte: de saber se o homem se deve considerar apenas corpo e ter um governo puramente temporal; se se deve aceitar como formado de uma e outra coisa e deve ter governo misto. E aqui, com duas possibilidades. A de ser esse um governo misto por acordo entre a autoridade espiritual e a autoridade temporal; ou a de os dois governos se reunirem na mesma pessoa, ponhamos, para sermos mais gerais, na mesma entidade.
O grito comum nos tempos modernos é o de que se deve separar. O que se entende perfeitamente do lado dos livres pensadores, os quais, quando muito, toleram que haja poder espiritual e estão mesmo dispostos, por amor da política e do espírito laico, a entrar naquilo que se chama o regime das concordatas. Mas que só se entende do lado dos que não são livres-pensadores, concedendo que a sua religião é uma religião de superfície, tão de superfície que aceita haver domínios de vida humana em que se pode perfeitamente dispensar a intervenção divina. Enfim, entre livres-pensadores que, em geral, ficam livres para não pensar coisa nenhuma, e religiosos para os quais em grande parte das vezes religião é apenas política, se firma um grande acordo: o de que estão todos dispostos a tirar o máximo que puderem da vida material e que a outra, a vida do espírito, se pode perfeitamente relegar a cerimónias sem real valor.
Tudo isto afinal traz a marca de uma ciência meio simplista que principia talvez como os anatomistas italianos e se firma quase até nossos tempos, a ciência que repousa sobre uma ideia de separação entre corpo e espírito; e traz igualmente a marca de que houve um momento de história da Humanidade em que as atenções se tiveram de voltar principalmente para a organização da nossa vida material e tão primacialmente que se justificou, contra o Salmista, a usura de Calvino e de Bentham, e se justificou, contra Cristo, o princípio da livre iniciativa e da concorrência económica. Hoje, porém, as coisas mudaram: o anatomista voltou a acreditar no espírito: não há uma medicina que se chama mesmo psico-somática? E mudaram as coisas também no outro campo: não se começa a perceber que a concorrência universal não veio a dar outra coisa senão uma universal falência?
Mas, coisa curiosa: ainda não se reparou talvez em que o país que todos apontam como um modelo de política não seguiu de jeito nenhum a tal linha de separar governo temporal e governo espiritual e, tendo cometido vários erros no que respeita a religião, não cometeu o erro essencial, isto é, o de deixar de ser religioso. Refiro-me naturalmente à gente inglesa, na qual o rei é papa, embora por motivos práticos, e não se esqueça que a instituição principiou porque um rei estrangeiro não sabia bastante inglês para poder presidir a conselho de ministros, embora, como dizia, por motivos práticos, se tenha confiado a um primeiro-ministro o encargo de administrar; na qual o Parlamento, dado este princípio geral, é na realidade o capítulo de uma ordem religiosa; em que, não havendo constituição, o país é, no entanto, constitucional porque há, pela inviolabilidade espiritual dos outros homens, pela sua pessoa, um respeito de carácter religioso; e em que, mesmo nos factos que passaram a anedota, como, por exemplo, o do inglês que se veste a rigor para jantar sozinho na selva, há um respeito litúrgico pela vida, que infelizmente nós perdemos desde os fins da Idade Média; em que, numa palavra, a mais perfeita das democracias é ao mesmo tempo a mais perfeita das teocracias.
Agostinho da Silva – Textos e Ensaios Filosóficos II
*As Aproximações, Lisboa, Guimarães Editores, 1960.
Teologia humana
A qual se manifestaria primeiro por estar livre de todos os sonhos de futuro, os quais só vêem de ser o presente pouco menos do que insuportável; quando dizemos que passamos grande parte da nossa existência sonhando o futuro, erramos; se estivéssemos sonhando para nada precisaríamos do futuro; a vida nos seria um sonho e nele tão plenamente nos realizaríamos que talvez a morte nos não aparecesse como uma quebra da vida e um seu desastre, mas com a garantia de que o sonho continuaria para sempre; projectar o futuro é apenas repelir o presente: o que não faremos quando o tivermos tão satisfatório como teologicamente o tem Deus, para o qual outro tempo não há; é, portanto, na tessitura do presente que nossos bordados deverão lançara o seu matiz: enquanto estamos vivos; única forma de não morrer.
Sinal seria também de liberdade livrarmo-nos da História; provavelmente só a estimamos e nos preocupamos com ela por causa dos nossos problemas do presente; a Grécia ensolarada e luminosa, entendendo-se o sol como a luz de fora e a luz como o sol de dentro, foi talvez apenas uma fantasia de refúgio para alemães anuviados por seus nevoeiros físicos, mas, sobretudo, pelos metafísicos; como a cartesiana o tem sido de franceses apaixonados pela inteligência pura, mas que têm, afinal, diante de si a lamentável realidade de sua classe média e de suas bem redigidas meditações sobre o nada; miséria do presente nos fazem rever glórias do passado, ou inventá-las; e quantas vezes se invoca História como dantes se falava de passarinhos nos fotógrafos: para distrair crianças; só que hoje não disparam as velhas máquinas de carapuço; disparam os canhões.
Na plenitude do presente ao presente iríamos criando, como criança, cuja vida se passa na realidade do irreal; aí se marca a sua maior diferença dos adultos: para ela o que existe é o presente; para o grande, que se julga melhor, o tempo que passa é apenas um intervalo, pelo qual nem dá, entre a recordação e o projecto: lhe vai a vida correndo do que já lamenta para o que lamentará dentro em pouco; a criança, porque o vive, suspende o tempo; fixado este ponto, poderíamos dizer que afinal o homem é um Deus que regride: divino como criança, e foi talvez esse o pensamento-base de São Francisco quando pela primeira vez imaginou e realizou os seus presépios, nem diabólico se torna quando cresce, que nisso haveria ainda qualquer grandeza; torna-se monótono e, se entra na categoria dos notáveis, discursa e inaugura fontanário; se fica nos humildes que o são contra vontade, pasma para a inauguração do fontanário; e se considera compensado de tudo se ainda a fotografia o apanhou, de esguelha, entre a fita e a água.
Mas os tempos virão, os tempos de ser Deus; virão talvez por linhas tortas, como é costume; virão pela colaboração de todos, mesmo dos que são contra, porque é o mundo máquina muito bem montada em que todas as rodinhas trabalham em conjunto e nenhuma, mesmo que o pretenda, foge a seu eixo e à sua função; um dia os homens, quando forem deuses, ou, pelo menos, mais deuses do que são hoje, entenderão isto e deixarão de escrever História que absolva ou condene: descreverão apenas, explicarão e justificarão; como nenhum relojoeiro é a favor do escape contra a corda: tudo é peça do relógio, e indispensável como peça. Pois serão deuses: sem uma política que os force a ser manhosos como escravos; sem religiões que se estabeleçam sobre o medo; e sem escolas que logo de princípio, pela carteira, a cópia e o ditado, nos modela para as facilidades do trânsito e nos abortam para o infinito Deus.
AGOSTINHO DA SILVA – Textos e Ensaios Filosóficos II
*«Teologia Humana», Vida Mundial, n.º 1637, 23 de Outubro de 1970.
Sobre a ideia de Deus
Mas há outra razão que me tem feito guardar silêncio sobre o assunto, imitando o que fez aquele lendário, ou não, rei romano, ou etrusco, que para o fim da vida adorava apenas a deusa Tácita, e não imitando os mestres zen para consumo da Califórnia, que, com as melhores intenções do mundo e aumentando ao mesmo tempo a felicidade espiritual de Mr. Jones e o depósito no banco, nos declaram que sobre o Absoluto nada há que dizer, e o dizem abundantemente em volumes anuais desprendidos e gordos. É que efectivamente só podemos falar do que é relativo, daqueles sujeitos a que podemos pregar seu atributozinho e que imediatamente limitamos; quando digo que uma árvore é um pinheiro impeço-a de ser cedro, quando digo que é um pinheiro alto impeço-o de ser baixo, e assim sucessivamente, como se dizia nas receitas de extrair raiz quadrada, receitas que explicavam tudo, excepto por que motivo se chamava raiz e se chamava quadrada; oxalá a matemática moderna, hoje como diria o Garrett, tão fashionável, o ponha claro nas infantis cabeças que aprendem conjuntos e continuam sozinhas.
Pois é aqui que efectivamente começam as minhas atrapalhações. Se eu digo que Deus existe, segundo os nossos pobres, ignorantes ou pelo menos limitados critérios, lá se vai a ideia de que Deus não existe, também segundo os mesmos limitados, ignorantes e pobres critérios, já não sabendo eu que fazer de meus irmãos ateus que aparecem no mundo tanto quanto eu, sobre os quais chove e faz sol como sobre mim e que, coitados, ainda têm de aturar os que dizem acreditar em Deus, ou acreditam mesmo, que aqui faz o hábito o monge, apenas porque têm medo de escorregar na rua e quebrarem a perna ou de lhes ir pelo petróleo abaixo o juro da ESSO.
Diz-me Frei G.H que posso tranquilamente continuar a pensar que Deus, simultaneamente, existe e não existe. Veria então Deus, muito de acordo com uma ideia da física cosmológica de nossos dias, e não me serve para nada um Deus que não resista à ciência, como o átomo inicial que explode em mundo, logo que, como não podia deixar de ser, por estar nele incluída a consciência, toma conhecimento de si mesmo: ao tomar Deus conhecimento de si próprio, se vê, ou é, sujeito e objecto, Pai e Filho, com um intervalo imediato de tempo e de espaço, como me sucede a mim quando me vejo ao espelho, ou me penso espelhado; mas, como acontece a mim e à minha imagem, a semelhança os liga, a identidade os une; e isto, que só existe quando Deus existe e porque é Pai e Filho, sujeito e objecto, chamarei eu de Espírito Santo.
Pondo de lado esta questão do Espírito Santo, para não exaltar os meus amigos de esquerda que me crêem místico, oxalá o fora, porque estaria então bem seguro de inteligência, de espírito prático e de não cair nunca em catecismos, pretos ou vermelhos, e para não descansar os meus amigos da direita que poderiam julgar, confundindo este meu Espírito Santo com a pomba amestrada que durante tanto tempo, mais com artes de corvo, separou a Igreja do Cristo que a fundou, direi agora, acumulando as enormidades, mas sempre com o acordo e, vamos lá dizer, a protecção de Frei G.H., que no momento em que o mundo explode de Deus, ou Deus explode em mundo, deixe ele de existir como Absoluto e, portanto, como Deus; é, já, a Trindade; e dessa, claro está, posso eu falar; o que não vale a pena, pois de outra coisa não têm tratado os teólogos.
A complicação agora é que penso que esta explosão não se deu de uma vez para sempre, mas se está dando a cada momento, e já dizer momento é pôr o tempo como discreto, o que só aceito em relógios, os quais, embora se saiba, é bom dizê-lo, não medem tempo, mas espaço; quero eu significar na minha que tempo e eternidade coincidem, que Deus e a Trindade são simultâneos e que, em física, a expansão e a contracção do Universo se dão ao mesmo tempo. Se assim for, ou fosse, teríamos aqui uma abertura para não aceitar a lei de evolução: como a energia aparece por quantidades discretas, os quanta, o Universo inteiro apareceria igualmente por quanta: um bicho não vem de outro bicho, aparece depois de outro bicho, e já o depois é mesmo termo prático nosso; coisa que também, acho eu, mas sempre com medo de dizer bobagem, aponta física quando não sabe mais em certos fenómenos que surpreende que coisa vem antes e que coisa vem depois ou se tem ainda algum sentido dizer antes e depois. Se isto tudo fosse certo, volto ao ponto, também existência de instinto não poria problema; em cada quantum de Universo tudo estaria logicamente coerente, engrenaria direitinho, Psamocero saberia sempre como caçar Migália.
Poderíamos então supor que o determinismo é seguro em cada e para cada momento do mundo e que, de cada um desses momentos, posso eu dar uma imagem matemática, mas que, ao retrair-se o Universo, ao passar a Trindade a Deus, ao passar o relativo ao absoluto, restabelece-se como lei a liberdade e o que depois surge pode ser totalmente diverso. Há a cada momento estradas de Damasco: um homem se aniquila, outro diferente, até contrário, surge. Não se é criminoso porque se quer, não há à nossa volta o mundo que se quer: mas não é impossível que, por se querer, por uma concentração suprema do espírito, se possa pular de quantum e nos transformemos a nós e ao mundo. O Universo, a nós nos incluindo, não é estático: vai e vem, sobe e desce: perder o quantum que se deseja é o mesmo que perder, por falta de pontualidade ou de atenção, o vaporzinho de Cacilhas ou a barca de Niterói, vamos lá ser ecuménicos, e o elevador de casa que a minha felizmente não tem.
Já agora, que me provocaram, praticamente me intimaram a falar de Deus, direi mais que não compreendi nunca haver contra a existência de Deus o argumento da existência do mal. Que Deus absoluto seria esse, que totalidade seria essa, se não pudesse aí haver aquilo a que chamamos mal e aquilo a que chamamos bem, se não houvesse a gazela que sofre a dentada do leão e o leão que da gazela vive; para todos existe o Diabo, em bicho o predador, em planta o ruminante, em homem o a que chamamos vício; para Deus não, nada, para Deus, é isto ou aquilo, embora o possa ser para a Trindade; tudo, para Deus, só é, sem isto nem aquilo; para o Pai é o Diabo, ou era um anjo inteligente como todos, e de iniciativa como nenhum, e a quem o Pai achou que, apesar de tudo o que podia suceder, e sucedeu, inaugurando História, e pergunto se já se pensou bastante em que é o Diabo o pai da História e deveríamos, portanto, fazer o possível por a abolir, a quem o Pai achou que, apesar de tudo, era melhor conceder liberdade de imprensa e até liberdade religiosa, de cujas consequências só João XXIII conseguiu ir livrando a Igreja.
Bom, afinal fiz como os tais do zen e ao contrário do Numa; me alonguei bastante sobre o Absoluto; mas quero repetir que dele se não pode falar: ou o sentimos ou o não sentimos; levita-nos, como a Santa Teresa e a tanto outro santo, cristão ou não cristão, pois muita gente julga que só há santos cristãos, se somos leves; se somos pesados, como me sucede a mim, ficamos com os dois pés, e às vezes com suspeitas de quatro, bem pregados no chão; tomem nota disto os realistas que suspeitam de místico tudo que é apenas inteligente e os idealistas que defendem o ideal para os outros e o real para eles: real de res, coisa, e real de rex, rei.
Agostinho da Silva – Textos e Ensaios Filosóficos II
«*Sobre ideia de Deus», in Pinharanda Gomes, Teodiceia Portuguesa Contemporânea, Lisboa, Sampedro, 1974.
sexta-feira, 24 de outubro de 2008
Ego: O estado actual da humanidade
Ego: O estado actual da humanidade
As palavras, quer sejam articuladas e transformadas em sons, quer fiquem por dizer e permaneçam sob a forma de pensamentos, podem lançar um feitiço quase hipnótico sobre nós. Perdemo-nos com facilidade nas palavras, somos hipnotizados para acreditar implicitamente que, ao relacionar uma palavra com uma coisa, sabemos o que ela é. Mas a realidade é que não sabemos. Apenas encobrimos o mistério com um rótulo. Tudo, seja um pássaro, uma árvore, até mesmo uma simples pedra ou, certamente, um ser humano, é, em última análise, incognoscível. Isto acontece porque tudo tem uma profundidade insondável. Tudo o que percepcionamos, sentimos e pensamos é apenas a camada superficial da realidade, equivalente a menos do que a ponta do icebergue.
Sob a aparência superficial, tudo está não só ligado a tudo o resto, como também à Fonte de toda a vida de onde tudo veio. Até uma pedra, ou mais facilmente uma flor ou um pássaro, pode mostrar-nos o caminho de regresso a Deus, à Fonte, a nós próprios. Ao observar ou agarrar a pedra, e deixando-a ser, sem lhe impor um rótulo verbal ou mental, há uma sensação de admiração e espanto que nos invade. A sua essência comunica connosco em silêncio e reflecte a nossa própria essência de novo em nós. É isto que os grandes artistas sentem e conseguem transmitir na sua arte. Van Gogh não afirmou: «Isto é apenas uma cadeira velha.» Observou-a durante algum tempo. Sentiu o Ser da cadeira. Depois, sentou-se em frente da tela e pegou no pincel. A cadeira em si teria sido vendida pelo equivalente a alguns dólares. O quadro dessa mesma cadeira renderia actualmente mais de 25 milhões de dólares.
Se não cobrimos o mundo de palavras e rótulos, a percepção do miraculoso regressará à nossa vida, após ter sido perdida há muito tempo, quando a Humanidade, em vez de usar o pensamento, foi dominada pelo pensamento. A profundidade regressa à nossa vida. As coisas recuperam o seu sentido de novidade, a sua frescura. E o maior milagre de todos é a vivência do nosso eu essencial anterior a quaisquer palavras, pensamentos, rótulos e imagens mentais. Para tal ser exequível, temos de libertar a nossa percepção do eu, do Ser, de todas as coisas com que se misturou, ou seja, com que se identificou. Esta libertação é o tema do presente livro.
Quanto mais céleres formos a atribuir rótulos mentais ou verbais às coisas, pessoas ou situações, mais fútil e fria se torna a nossa realidade e mais insensíveis nos tornamos à realidade do milagre da vida, que se manifesta continuamente dentro e fora de nós. Desta forma, podemos ganhar em intelecto, mas perdemos em sabedoria, bem como em alegria, amor, criatividade e vitalidade. Estes elementos ficam dissimulados no espaço morto entre a percepção e a interpretação. É óbvio que é necessário usar palavras e pensamentos. Eles têm a sua própria beleza – mas haverá necessidade de ficar presos a eles?
As palavras reduzem a realidade a algo que a mente humana consegue compreender, o que não é grande coisa. A linguagem consiste em cinco sons básicos produzidos pelas cordas vocais: as vogais «a, e, i, o, u,». Os outros sons são consoantes produzidas pela pressão do ar: «s, f, g», e assim por diante. Acredita mesmo que a combinação destes sons básicos alguma vez poderia explicar quem somos, qual é o derradeiro propósito do Universo ou o que é uma árvore ou uma pedra na sua essência?
ECKHART TOLLE
UM MUNDO NOVO – Despertar para a Essência da Vida.
quarta-feira, 22 de outubro de 2008
O despertar de uma nova consciência
Não é meu propósito dar lições seja do que for, porque nem aluno me considero, mas bastante aprendiz do que vou lendo; é meu propósito, sim, dar a conhecer porque encontro na leitura que faço, motivos fortes para partilhar com todos Vós; e como partilhar é mesmo o que gosto de fazer; quando há nessa partilha algo de positivo, Humano, e acima de tudo uma luta para ir ao encontro do Supremo que habita em nós. E tudo o que é, é Divino
O maior feito realizado pela Humanidade não está relacionado com o que ela conseguiu atingir na arte, na ciência ou na tecnologia, mas com o reconhecimento da sua própria disfunção, da sua própria loucura. Num passado remoto, este reconhecimento foi efectuado por alguns indivíduos. Um indivíduo chamado Siddhartha Gautama, que viveu há 2600 anos na Índia, foi talvez o primeiro a vê-lo com toda a clareza. Mais tarde, foi-lhe conferido o título de Buda. À letra, Buda significa «o desperto». Sensivelmente na mesma altura, surgiu na China outro dos primeiros mestres iluminados. Chamava-se Lao-Tsé. Lao-Tsé deixou registo dos seus ensinamentos num dos livros espirituais mais profundos alguma vez escritos: o Tao Te King.
Reconhecermos a nossa própria insanidade é, obviamente, o primeiro passo a dar para alcançar a sanidade mental, o início do processo de cura e transcendência. Uma nova dimensão de consciência começou então a emergir no planeta, uma primeira tentativa de florescimento. Estes indivíduos extraordinários falaram com os seus contemporâneos. Falaram do pecado, do sofrimento, da ilusão. Disseram: «Observa o modo como vives. Olha para o que estás a fazer, para o sofrimento que crias.» Então, apontaram para a possibilidade de um despertar do pesadelo colectivo da existência humana «normal». Indicaram o caminho.
O mundo ainda não estava preparado para compreender as suas palavras e, no entanto, eles tiveram um papel vital e necessário no despertar da Humanidade. Inevitavelmente, fora quase sempre mal interpretados pelos seus contemporâneos, bem como pelas gerações seguintes. Os seus ensinamentos, apesar de simples e poderosos, foram distorcidos e mal interpretados, em alguns casos, inclusivamente no momento em que eram registados por escrito pelos seus discípulos. Ao longo dos séculos, foram acrescentadas muitas coisas que nada têm a ver com os ensinamentos originais, equivalendo a reflexos de uma má interpretação de raiz. Alguns dos mestres foram ridicularizados, insultados ou mortos; outros passaram a ser venerados como deuses. Os ensinamentos que apontavam o caminho para lá da disfunção da mente humana e que permitiriam sair desta loucura colectiva foram distorcidos e tornaram-se eles próprios parte integrante da loucura.
Foi deste modo que as religiões se tornaram, em grande medida, forças de divisão em vez de forças de união. Em lugar de eliminarem a violência e o ódio através da percepção da unicidade fundamental de toda a vida, deram origem a mais violência e mais ódio, a mais divisões entre as pessoas, bem como entre diferentes religiões e até dentro da mesma religião. Converteram-se em ideologias, sistemas de crenças com os quais as pessoas se podiam identificar e que, por isso, podiam usar para reforçar a sua falsa noção de identidade. As religiões concediam às pessoas o pretexto para se sentirem «certas» em oposição aos outros, que estavam «errados», e, por conseguinte, ajudavam-nas a definir a sua identidade com base nos seus inimigos, os «outros», os «descrentes» ou «mal-crentes», encontrando com frequência justificação para os matar. O Homem criou «Deus» à sua imagem. O eterno, o infinito e o inominável foram reduzidos a um ídolo mental, no qual se tinha de acreditar e o qual se tinha de venerar como o «meu deus» ou o «nosso deus».
No entanto... no entanto... apesar de todos os actos de loucura cometidos em nome da religião, a Verdade para a qual apontam ainda brilha no seu âmago. Continua a brilhar, por mais ténue que seja o brilho, por baixo das várias camadas de distorção ou má interpretação. Porém, é pouco provável que sejamos capazes de percepcionar esse brilho se nunca tivermos tido pelo menos vislumbres dessa Verdade dentro de nós mesmos. Ao longo da História, houve sempre raros indivíduos que viveram uma mudança de consciência e que, desta forma, se aperceberam dentro de si próprios d’Aquilo para que todas as religiões apontam. Para descrever essa Verdade não-conceptual, utilizaram então a estrutura conceptual das respectivas religiões.
Por intermédio de alguns destes homens e mulheres, no seio das principais religiões desenvolveram-se escolas ou movimentos que representavam não só uma redescoberta, mas também, em alguns casos, uma intensificação da luz da doutrina original. Deste modo, nasceram no seio do Cristianismo inicial e medieval o gnosticismo e o misticismo, o sufismo na religião islâmica, o chassidismo e a cabala no Judaísmo, o advaita vedanta no Hinduísmo e o zen e o dzogchen no Budismo. A maior parte destas escolas era iconoclasta. Estas escolas fizeram desaparecer camadas e camadas de estruturas de conceptualização morta e sistemas mentais de crenças, o que fez com que a grande maioria fosse vista com desconfiança, e muitas vezes até com hostilidade, por parte das hierarquias religiosas oficiais. Ao contrário da religião dominante, os seus ensinamentos acentuavam a compreensão e a transformação interior. Foi através destas escolas ou movimentos esotéricos que as principais religiões recuperaram o poder transformador dos ensinamentos originais, embora, na maior parte dos casos, apenas uma pequena minoria de pessoas pudesse ter acesso a eles. Este número de pessoas nunca foi suficientemente grande para causar um impacto significativo na inconsciência colectiva profundamente enraizada na maioria das pessoas. Com o tempo, até algumas destas escolas se tornaram demasiado rígidas ou conceptualizadas para surtirem efeito.
ECKHART TOLLE
UM MUNDO NOVO - Despertar para a Essência da Vida.
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
Espiritualidade e Religião
A nova espiritualidade, a transformação da consciência, está a surgir, em grande medida, fora das estruturas das religiões institucionalizadas. Sempre existiram elementos espirituais, inclusive nas religiões dominadas pela mente, apesar de as hierarquias institucionalizadas geralmente se sentirem ameaçadas por esses mesmos elementos e tentarem suprimi-los. Uma grande vaga de espiritualidade fora das estruturas religiosas constitui um desenvolvimento completamente novo. No passado, esta vaga teria sido inconcebível, sobretudo no Ocidente, onde a cultura está mais dominada pela mente, e onde a igreja cristã detinha o privilégio virtual da espiritualidade. Não se podia simplesmente dar uma palestra sobre espiritualidade ou publicar um livro dedicado a este tema sem a autorização da Igreja e, se essa autorização não fosse obtida, a Igreja depressa silenciaria os perpetradores. Porém, actualmente, mesmo no seio de certas igrejas e religiões, há sinais de mudança. É reconfortante e devemos estar gratos pelos mínimos indícios de abertura, como a visita do Papa João Paulo II a uma mesquita e a uma sinagoga.
Em parte devido aos ensinamentos espirituais que surgiram fora do âmbito das religiões oficiais, mas também devido a uma afluxo de antigos conhecimentos e ensinamentos orientais, há um número crescente de seguidores das religiões tradicionais capazes de se libertar da identificação com a forma, do dogma e dos rígidos sistemas de crenças, e de descobrir a essência original escondida no âmago da sua tradição religiosa, ao mesmo tempo que descobrem a sua própria essência. Compreendem que a nossa «espiritualidade» nada tem a ver com aquilo em que acreditamos, mas sim com o nosso estado de consciência. Por sua vez, isto determina o modo como agem no mundo e como interagem com os outros.
As pessoas que não capazes de ver para lá da forma tornam-se ainda mais firmes nas suas crenças, ou seja, na sua mente. Neste momento, estamos a assistir não só a um afluxo de consciência sem precedentes, como também a uma firmeza e intensificação do ego. Algumas instituições religiosas estarão abertas à nova consciência, outras irão reforçar as suas posições doutrinais e integrar-se em todas as outras estruturas artificiais, através das quais o ego colectivo vai tentar defender-se e «ripostar». Algumas igrejas e facções, bem como alguns cultos e movimentos religiosos, são basicamente entidades colectivas egóicas, tão rigidamente identificadas com as suas posições mentais como os seguidores de uma ideologia política fechada a qualquer interpretação alternativa da realidade.
Mas o ego está destinado a perecer, e todas as suas estruturas ossificadas, sejam instituições religiosas ou outras, como empresas ou governos, irão desintegrar-se a partir do seu núcleo, independentemente do quão enraizadas aparentem estar. As estruturas mais rígidas, as mais difíceis de mudar, serão as primeiras a sucumbir. Exemplo disto é o que já aconteceu no comunismo soviético. Por mais profundamente enraizado, sólido e monolítico que possa ter parecido estar, em poucos anos desintegrou-se a partir do seu núcleo. Ninguém previu isto. Todos foram apanhados de surpresa. E há muitas mais surpresas à nossa espera.
ECKHART TOLLE – UM NOVO MUNDO
Despertar para a Essência da Vida
domingo, 19 de outubro de 2008
QUINZE PRINCÍPIOS PORTUGUESES - 15
15 – Dos Abraços – Se em grande parte se não tivessem as igrejas transformado em repartições públicas ou se mais vivo fosse nos povos o amor de Deus, certamente estariam abertas dia e noite e a toda a gente acolheriam, fosse ela ou não de seu próprio credo. Mas a estas igrejas lhe daríamos portas estreitas, não tanto como crivo de entrada, mas para que não passassem os homens tão indiferentes como passam, cuidando pouco da salvação dos outros, muito da sua, mas indo até com grande frequência em busca de bênçãos para sua perdição. E destas portas estreitas partiriam as pontes, não só aquelas de que falámos, que se fazem de povo a povo, se estabelecem em tratados, e em que quando muito comungam as bandeiras, mas as que se lançam mais profunda e duradouramente de homem para homem, sem penas de ouro, ou clarins ou taças.
Portugueses de todo o mar, espanhóis de toda a terra, ingleses de toda a ilha, talvez com franceses, agora, segundo parece, se divorciando dos alemães, sempre soberbo gado, e porventura não apenas no sentido épico, talvez com africanos, com indianos, com amarelos, poderiam ainda salvar o mundo e apontar-lhe caminhos do futuro, que mais estão no desenvolvimento interior do que no aparelhamento prático que terá, por muito mérito, o de liquidar para sempre a fome, o desabrigo ou a doença. A Igreja Ecuménica, nós a poderíamos pregar melhor que ninguém, pois soubemos conviver, nos tempos que verdadeiramente foram nossos, com judeus e mouriscos, propusemos que budismo e cristianismo se fundissem, sonhámos templos shinto de ritual cristão; fomos do Espírito Santo muito mais que de Deus regendo ou de um Deus morrendo. A República Universal, nós a poderíamos propugnar melhor que ninguém porque soubemos unir, também nos tempos nossos, de concelho a concelho, as diversidades do mundo. O Tudo para Todos, nós o poderíamos organizar melhor que ninguém, que essa foi nossa vida, quando a tínhamos, em plaino ou serra.
Sempre quando o tempo era nosso; quando era nossa a vida; quando o Rei não morrera. Mas o Rei está apenas oculto, na Ilha de encantos que é cada um de nós, e espera que a ele nos submetamos para que surja e salve; basta que acorde na alma de um de nós, para que também desperte nas almas que se perdem de tristeza e de dó pelas aldeias da Península, pelas savanas de África, pelos palmares da Índia, pelas favelas de Paris ou pelas avenidas da Alemanha. Basta que num se erga; o Povo é ele e dele. Forças nenhumas se lhe poderão opor, se ele próprio não provocar a batalha e se toda a sua coragem se concentrar, não em agredir, mas em se afirmar e em ser pacientemente, mas sem concessões, persistentemente, mas sem dureza, todo na tarefa, mas sem interesse seu, o guia que se espera, heróico e lúcido, ousado e calmo, aventureiro e lento. Todos em El-Rei, El-Rei em todos; e sem Rei nenhum, que o não precisamos para nada, pois o Rei o somos.
Agostinho da Silva – Dispersos
* In espiral, Ano II – n.ºs 8-9, Inverno de 1965.
QUINZE PRINCÍPIOS PORTUGUESES - 14
Das Pontes – Fraguedos se afrontam, rio ruge no fundo, homens desafiadoramente se contemplam de margem para margem, enquanto sobre uma geometria que nunca há, e daí seu poder, não vem moldar-se um arco, estruturar-se um pilar, rasgar-se a avenida por onde são possíveis encontros, diálogos e o projectar de marchas que ao universo cinjam com cintura de amor. Muita ponte levantou Portugal e a grande parte o tempo as destruiu ou por elas passaram cargas de ódio que não poderiam suportar; o que ficou foi apenas, no derruído arcabouço, a lembrança de um voto e, com ela, uma nova chamada. Se a Catedral, a que se quer erguida de três naves, não for o surgidouro de novas pontes, para nada terá valido o esforço de lhe reabrir as perras portas, lhe aprumar os muros, a recobrir de rosas e a clangorar de trombetas.
Primeira ponte a do Brasil, há tanto tempo separado, primeiro por quem o quis não para arar, como o desejou o povo que emigrava fugindo de um País já avassalado pelo estrangeiro, mas para o despojar por suas matas, para o escravizar em sua gente, para o rasgar em suas minas, mas até hoje feridas e cicatrizes de morros; depois por quem o queria aberto só a navios portugueses, de lá tirou o rei que tão bem se lhe casara, lhe legando outro rei que nunca percebeu que em terra de nossa língua só há governo certo quando as Cartas são outorgadas aos reis, não quando as outorgam a eles; finalmente pela retórica, pelo descaso, pelo desprezo.
Depois desta, e num conjunto, todas as que significam a ida a irmãos nossos, mas a nós próprios, como no caso do Brasil. A ida a uma Inglaterra que esteve connosco num megalítico longínquo e nos deu um Rei Artur, aclimatado de resto, e nos ajudou, por nos manter independentes, a construir o Brasil. A ida a uma Galiza, que ainda se lembra da Irmandade da Fala; a uma Catalunha, em que a Península se abranda ao Mar Mediterrâneo; a uma Espanha Central que arranca da aspereza dos Bascos, é, com Castela, puro centro de enlace, e abre a Andaluzia aos mornos ventos de África e às saudades das mouras. A ida àqueles com quem a nossa história se abraçou, desde o México ao Cabo Horn, ou pela costa de África, Costa e contra-Costa, ou pelos lugares de S. Francisco Xavier ou pelas pequenas, solitárias terras que permitem ver a China e Indonésia, ou pelas outras, mais distantes ainda, em que se celebra, como em Honda, a introdução de medicina, ou se fala, como na poeira de arquipélagos, língua franca de base em Português.
Agostinho da Silva - Dispersos
* In Espiral, Ano II - n.ºs 8-9, Inverno de 1965.
QUINZE PRINCÍPIOS PORTUGUESES - 13
13 – Dos Poderes – Da escarlata real que atapeta, sob os passos do Povo, este é o trecho de mais sangue e vida; aqui será sua coroação e logo se repartirá nas bandeiras rubras do Espírito Santo que levarão a todo o lugar, por mais oculto em alcantil ou mais rasteiro na planície, a nova de arraial, para que a vida rejuvenesça e em vermelha chama se afirme sobre terra e céu. Nenhuma liberdade existe se não é pessoal e local e nenhuma história é digna de ser vivida se não é o que vai sendo o mais forte, mais vitorioso, mais inabalável afirmar do gesto de princípio que para trás ficou. A redenção de Portugal, se proclamada nas capitais, nelas morrerá um dia; é ao de que se formou que o País inteiro tem de voltar, para, voltando, o levar ao mundo.
Quando Pombal ordenava que se fizessem das aldeias de índios Municípios, com vereadores indígenas, estava reconhecendo, qualquer que fosse o seu comportamento na metrópole, que o Brasil não era uma simples colónia, mas uma pátria autónoma, bem mais portuguesa do que o reino que afinal o Ministro reduzia ao que queria; reconhecia, por outro lado, que era o município a verdadeira instituição de governo do País, e lhe dava suporte económico, dentro das melhores tradições, quando mandava que fosse a terra da aldeia uma terra comum; finalmente, negando-a aos de dentro, reconhecia, no Descoberto, a irmandade de que sempre deveria ter sido sinónimo o nome de Portugal e tratava o Povo não como escravo, mas como Rei.
Rei de direito divino ou Presidente de direito humano, tudo sempre esteve errado em Portugal. A fonte do Poder não é, para portugueses, nem delegação de transcendências, nem figuração de imanências, nem contrato ou consenso; a fonte do poder é a unidade essencial do homem, da paisagem e do sonho que numa e noutro anda; o poder emana das aldeias no curtido das faces, na aspereza das rochas, no fumo das lareiras, no mugido dos gados, no escampado horizonte, na imobilidade e no gesto, no silêncio e na palavra; o primeiro elemento é o do homem e seu chão e seu cão; depois se forma aldeia, ainda mais pequena e desvalida para ser política; mas com o município a primeira república se forma e sobre ela tudo o resto se tem de modelar; a Federação começa aqui, como o unir-se à vizinha república; a Cooperativa começa aqui, com a junção das economias aldeãs; a Catedral começa aqui, com esta pedra de muro ou este ladrilho de piso; conhece a Nau seus primeiros redemoinhos nas águas bravas do cabril; e é o primeiro Reino o deste Rei, com se chão e seu cão; repeti-lo não sobra.
Agostinho da Silva – Dispersos
* In Espiral, Ano II – n.ºs 8-9, Inverno de 1965.
QUINZE PRINCÍPIOS PORTUGUESES - 12
12 – Das Buscas – São as bibliotecas, no melhor dos casos, repositórios do que se sabe e por isso quase sempre, ao passar entre as grandes estantes, o que desce sobre nós é a angústia, o silêncio e a inexplicação dos cemitérios. Talvez fosse bom pensar-se em bibliotecas de outro tipo, nas quais se tratasse do que se não sabe ainda; bibliotecas e museus da ignorância humana. Aí se ocupariam os bibliotecários não de cada vez com a maior perfeição e mais apurado bom gosto e comodidade adornar e catalogar e dispor racionalmente suas sepulturas, mas de concitar por seus mágicos meios as almas do que ainda não nasceu, em lugar de sentirem envolvê-los a melancolia de saberem, mesmo quando o não dizem, que consiste seu ofício em cuidar, como nos cemitérios de homens, do que, vivo, foi indispensável e, morto, empacha. Livro, afinal, é um esqueleto de autor; com a possibilidade de os termos todos, pelos sistemas actuais ou próximos futuros de comunicação, ao alcance de leitura, talvez fosse bom reduzirem-se as bibliotecas a um mínimo e cremar todo o resto, para dar lugar às mostras do que se não sabe.
Escola, também, desde as infantil às de pós-graduação, se deve fazer à volta do que se ignora, ou ao nível individual do aluno, que tem de descobrir para aprender, ou ao nível colectivo todo virado para a pesquisa, que pode ser e é na maior parte das vezes simples meditação, porque o resto que se chama pesquisa é, quando muito, consulta ou encontro; todo virado para a pesquisa e bem desprezativo do ensino. E, se tudo isto é verdadeiro para a totalidade dos povos, mais agudo sentido atinge para Portugal, tanto o pequeno como o dos Sete Mares, porque, simbolicamente, foi a sua primeira grande época a dos Descobrimentos, que não estavam em nenhum livro e ninguém sabia de cor e ninguém punha como ponto de prova ou batalha de banca.
Cabe-lhe descobrir de novo, e no muito mais difícil do que litoral fixo em ladeza e altura; cabe-lhe ir ao encontro não da natureza que já é, e que o seu filósofo de Holanda matou em princípio passado, mas da outra natureza que pôs ele para sempre viva num particípio que só é realmente presente para um Deus sempre e, por sua iluminação, para os gramáticos; para nós, enquanto não subirmos ao Divino, irremediavelmente passado ou futuro. É esta fugidia praia a verdadeira costa portuguesa e nela a Ninfa espera o seu Herói para o coroar de eterno.
Agostinho da Silva – Dispersos
* In Espiral, Ano II, n.ºs 8-9, Inverno de 1965.
QUINZE PRINCÍPIOS PORTUGUESES - 11
11 – Das Ofertas – De queda em queda se chegou a entrar nos templos apenas para pedir, quando o acto real deveria ter sido sempre o de oferecer; Portugal não tem de entrar em mais sagrado algum dos seu, catedral, mesquita, terreiro ou templo, que em qualquer deles nosso Deus novo e redimido está, sem que sua carga seja de ofertas não de preces, sem que seus carros carreiem frutos de terra e mar, como a melhor das orações e o mais grato dos louvores à glória divina. Outrora se marcou a Terra Prometida porque emanavam de seus campos leite e mel e não há terra nenhuma de Deus aos homens que não possa ter consigo a mesma promessa e a mesma realização.
Mas à terra temos tratado como se escrava fosse, não como a companheira livre que, fecundada, à força de criar liberta e à liberdade lança, no futuro, o ser recente. Perdeu-se a lembrança do tempo em que os homens de Portugal aravam as terras que de ninguém eram e nunca houve tempo que permitisse que as tarefas comuns de manufactura também de todos fossem. Outro mundo inventou e organizou o ser só de um o que de comum era, por ser de Deus; e veio esse mundo e nos conquistou e nos fez, além de miseráveis em nossa própria casa, os que tantas vezes foram a outros povos não como irmãos, como, porém, a escravos. Outro mundo, mais recente mundo, não deu o comum aos homens, mas os homens ao comum. Cabe-nos agora, que teremos Rei, Templo que o coroe e Braços que o sustenham, ir ao mundo que ficou para além desses e lhe ensinar, pelo que tivermos feito, que nem é boa a propriedade de um nem a propriedade de todos, porque ser dono é o começo de todas as perdições. Tudo aí está para que sejamos; sejamos o quê? O ser apenas, sem predicado.
Creio, entre outras verdades, na verdade eterna do Evangelho e estou seguro que nem a exortação nem a promessa foram vãs: um dia poderá o homem, já nem escravo de si mesmo, adorar Deus em espírito e verdade, sem separação, sem trabalho, e sem morte. Não se irá, porém, por nenhum dos dois caminhos que actualmente se trilham, duas formas de capitalismo, e cada vez mais próximas, e cada vez mais visivelmente portadoras de guerra; só a cooperativização dos meios de produção, crédito e transporte poderá fazer o que não fez nem o seu abandono aos caprichos individuais nem a sua apropriação pelo Estado; mas, até a cooperativa, ainda imperfeita, apenas meio; meio, porém, mais da natureza dos fins; melhor, portanto. Mas o que El-Rei quer mesmo é uma economia em que, por não haver escassez, se espedacem as leis e, da que julgam fundamental, só Oferta fique; ou, o que o mesmo é, Homem se colhendo ao seio de Deus.
Agostinho da Silva – Dispersos
* In Espiral, Ano II – n.ºs 8-9, Inverno de 1965.
QUINZE PRINCÍPIOS PORTUGUESES - 10
10 – Dos Braços – El-Rei, porém, vem ferido e cansado dos grilhões, dos maus tratos, das saudades, El-Rei quer que dele cuidem, El-Rei quer que o ressuscitem, que vem desfalecido, quase morto, da ausência e da viagem; cumpriu sua palavra de aparecer; lhe apareçamos nós agora. Se fôssemos noutros tempos, seus Três braços aqui estariam para o acolher, mas, depois da batalha, o Povo se lhe transformou e, se ainda acreditas nele é porque, na realidade, nunca desesperou de si próprio, mas mudou de nome, todo se fez no Rei e a si próprio se não pôde tratar; à Nobreza a tomaram maus ventos: uma se dispersou por longes terras, outra se teve de fazer de novo, mas não como depois de Aljubarrota, em que a sagrava a espada, mas edificando seus solares em terras leilão e tão escrava do lucro que um dia passou de rei a presidente, sem se bater, sem reagir, porque o essencial, o que era comércio, continuava; só o Clero permaneceu, porque podem as frondes ser de Tempo, e como ao Tempo ondeiam, mas é a raiz de Eternidade, a Eternidade que se não dobra nem a respeito nem a poder nem a dinheiro.
Pois seja esse um Braço novo, mas não já nos estreitos limites em que o modelara um mundo indescoberto; veja que, por termos sido, houve a Ecúmena e que, se a Pomba de novo desfere o voo, reflectem suas asas os mil cambiantes de um céu outro; Igrejas que desconhecia, por não poder ou não querer, lentamente caminham para que se reúnam num só rebanho e um só Pastor, que é Deus, o tenham; que é Deus, negado ou afirmado ou simplesmente ignorado, para uma Igreja em que todos serão chamados e todos serão eleitos. Essa Igreja de todas as Igrejas receba o Rei e o restaure.
Venham com ela a disciplina, o desprendimento, a vocação de servir que estão na alma do verdadeiro Soldado, à morte oferecido para que outros vivam; saiba aprender a que o não submetam os jogos dos políticos, nem os do lucro e ande sua força ao serviço do Povo, que tantos outros poderes podem tentar, prender, perder; a quietação que ao Rei restaure só ele a pode dar; sejam-lhe docel de outra vez noivado as espadas que até hoje tanta vez lhe impediram regresso.
Finalmente lhe seja o outro Braço de amparo aquele que outrora plantou em Portugal quem o julgou tão importante como os madeiros das naus ou os cantares da língua; desperte finalmente a Universidade de seu sono de séculos, venha ensinar-nos de novo os caminhos do mar, as fraternidades da terra, o valor da fala, as técnicas que salvam, as ciências que sonham, a juventude que se esqueceu; uma Universidade agora total como sempre deveria ter sido, desde as escolas que ensinem o povo a ler até as adivinhações que só os séculos futuros entenderão. Rei, agora para nós já indistinto de Povo, mãos de reza, mãos de espada, mãos de pena se ergam para ti ou para ti se baixem, em tua miséria e desamparo; as mãos dos fortes Braços que te erguerão ao Céu.
Agostinho da Silva – Dispersos
* In Espiral, Ano II - n.ºs 8-9, Inverno de 1965.
QUINZE PRINCÍPIOS PORTUGUESES - 9
Das Naves – Naus ou catedral, embora na última se pense mais, para coroação do que depois de Rei do mundo tem sido mendigo de todos os que algum dia se supuseram com possibilidades íntimas de assumir por ele a realeza; ou as realezas, porquanto o que nos grandes é plural em nós se singulariza por uma e uma de nossas incapacidades: primeiro realeza, que não diríamos menos, de pastorear os rios e montes que de Monção vão até Lagos ou de S. Martinho até Almeida; depois a realeza que se iniciou em Ceuta e D. Francisco, morrendo, selou no Cabo; finalmente a realeza que se aboca no Índico e corre de ilha a ilha até às lonjuras de Hawai. Seja, pois, catedral de três naves e tão grande venha o cortejo do Rei que volta, na sua face múltipla de brancos, negros, amarelos, que por elas três tenha de desfilar, no caminho de um céu para outro céu.
O povo espera, para ser, que as portas do templo se abram e que, já Rei liberto, pois foi ele o que tombou na batalha, as três naves o chamem e que às três para ir, cumprindo a profecia, nau, que nave é, em cada uma, para cada uma se lhe depare; e o nevoeiro que o envolverá é nevoeiro do mar, em volutas na voluta das ondas, onde ele no ar aos altos mastros, irmão das flâmulas, lento mas vago, diáfano anúncio do azul que finalmente rompe no esplendor da costa, para o, profetizado, eterno , beijo da verdade.
Portugal é há três séculos uma igreja fechada e em ruínas, com ventos maus que uivam; bastará, porém, abrir-lhes as portas para que, se há prisioneiros, vejam afinal a luz do sol, e entre largo o temporal, se tiver de entrar, que ninguém lhe tem medo se de frente, e, porque se acreditou no milagre, o milagre se faça de se reconstruir e ressoar não de lamentos, mas de cantos, e se iluminar não de lembranças, mas de esperanças. Que à nossa pequenina Europa se venham juntar, em tudo iguais, à nossa pequenina África e a nossa pequenina Ásia; ou que, em termos de mar, que é nossa verdadeira linguagem, no Atlântico Norte se junte o do Sul, do Índico e Pacífico eles rolem. Portugal só será porto a que aporte a galera real se for primeiro uma República, não no sentido de que tenha presidente ou rei, mas no sentido de que tudo o que houver público seja, e nem de príncipe, ou por ele plebeu, se pense; se for depois orgulhosa e desafiadoramente Portuguesa, que essa é a língua que tem de ir de si soberba e altiva; se finalmente se declarar Federativa, significando por aí, principalmente, que todas as suas relações são de voluntariedade e de tratado. E, sobre suas três naves marítimas, o Espírito, de novo, pairará.
Agostinho da Silva – Dispersos
* In Espiral, Ano II – n.ºs 8-9, Inverno de 1965.
QUINZE PRINCÍPIOS PORTUGUESES - 8
8 – Do Servir – Servos dos servos, é o maior título de glória e já todos como tal o teriam reconhecido se em tempo algum e em lugar algum pudesse ele ter sido tachado de hipocrisia. Servo dos servos deveria ser o mais querido título dos que se têm aparelhado ou se aparelham agora para a tarefa de dirigir os povos que da pequena casa lusitana ou da maior casa ibérica se derramaram ao mundo. Fácil é encontrar receitas nas boticas que já aviaram remédios, mas para seus próprios fregueses, e por várias vezes têm nossos doentes estado à morte porque tal tem sido a terapêutica. Talvez conviesse que chegássemos agora desarmados, sem teoria alguma, sem conselho nenhum a dar, e perguntássemos simplesmente que quer o povo que dele façam ou que lhe façam.
Creio bem que quererá primeiro durar, depois saber, e o resto, que para nós poremos, o povo tomará se quiser, e sobretudo se primeiro o tomarmos nós, começando por isto de servir que nos despoja bastante de nosso orgulho de que somos melhores de que os humildes e nos entreterá bastante para que durante algum tempo não aprendamos mais teorias novas em manuais estrangeiros. Se houve alguma reforma religiosa realmente válida e profunda no nosso tempo não veio ela de concílios ou de encíclicas ou de conselhos mundiais de profanas igrejas; veio de um homem só e perdido no deserto, dum homem que não encontrou jamais quem o seguisse porque, se sua vida era dura, mais dura era ainda para os espíritos eclesiásticos a obrigação de não converter ninguém, de não catequizar, de não impor doutrinas, e de substituir tudo isto pelo servir, pelo servir na companhia, pelo servir na amizade, pelo servir no que pediam, quando, raramente, se podia o que pediam.
Nos areais se perdeu uma nação, dos areais pode vir sinal decisivo, se o mesmo fizermos e praticamente nas mesmas linhas de Foucauld: se, não num campo determinadamente religioso, mas no cultural, no económico, no social, e deixemos que da política, enquanto não presta, quem não presta se incumba, formos ao povo, vivendo e sabendo, e o servirmos, sem sequer uma tentativa de o organizar, de o canalizar a qualquer rumo, de trazer água a nossos regadios, mas prontos para a resposta a qualquer pergunta, para o sim a qualquer pedido, mesmo na experiência que supomos errada, para o abrir dos caminhos que seus pés, seus magoados, seus sangrentos pés, queiram trilhar. D. Sebastião, quando surgir, não virá de nenhum de nós, a nenhum de nós adoptará como disfarce; quem acreditará que regressa de cativeiro, se aparecer bem tratado, frequentador de bibliotecas, colaborador de revistas ou chefe de repartição? El-Rei vem de desertos, vem de três séculos de fome, vem pelos caminhos do exílio, do abandono e da perseguição; qualquer do povo pode ser Ele, como outrora, nos contos, qualquer velha podia ser Nossa Senhora, qualquer mendigo podia ser Cristo; nos contos e em S. Bento. Só quererá que o sirvam, com humildade, com respeito, com eficiente obediência; de estradas sabe ele melhor que nós; das estradas reais.
Agostinho da Silva- Dispersos
* In Espiral, Ano II . n.ºs 8-9, Inverno de 1965.