No que posso, e realmente não é muito, estando muito mais ainda em desejo do que em realidade, pertenço ao grupo dos que acreditam em geometria, tanto sob o ponto de vista teórico, como pelo que respeita à utilidade prática, nos vários sentidos em que a expressão tem sido tomada, como ainda, o que é o mais importante de tudo, na medida em que a geometria tem sido olhada como a revelação da própria realidade mais íntima do Universo; acho que ninguém deveria entregar-se a nenhuma espécie de especulação sem que tivesse passado pela geometria, o que naturalmente não significa a mesma coisa do que saber geometria; o que se torna necessário é ter entendido geometria, e sobretudo em dois pontos capitais: o de, através de Descartes, a retirar por completo do espaço, a que a noção comum a liga inexoravelmente, como que lembrando-se ainda das supostas origens num pesado Egipto, que entendia de tudo ou quase tudo, excepto matemática; e o de, através de mais modernos, ver todas as geometrias que podemos entender como a variada, a facetada projecção em nossa mente, de uma essencial geometria que ainda não atingimos.
Creio ainda que, entendida a geometria para além das técnicas exigidas nos exames e que têm, pedagógica e espiritualmente, o mesmo valor de lavar bem a louça ou costurar bem ou, até, de saber latim, ela aparece como inteira e desejavelmente aplicável a tudo o que na vida se desenrola. Se, cartesianamente uma vez mais, a física moderna não é verdadeiramente outra coisa senão geometria, e cada dia chegando mais perto da tal geometria essencial, que só vai, toda ela, poder ser pensada e não imaginada ou representada, o que é necessário é que rapidamente entre a química, o que na essência já está feito, na categoria geométrica e logo após ela venha a biologia a libertar-se de princípios vitais mais fantasiosos que reais; e, ao contrário do que é de hábito supor-se, é exactamente quando a mais renitente, e porque mais complexa e mais atrasada das ciências, se tiver geometrizado que todas as tendências positivistas terão sido definitivamente derrubadas: porque pela sua liberdade essencial, pela sua fantasia, a geometria é inimiga de factos, de fenómenos e de leis, pelo menos do que até há pouco se entendia, em física, por lei.
O grande passo a dar é, porém, o da História. Ela é a nossa vida, ao passo que a outra é apenas o nosso saber; nenhuma física e nenhuma química têm criado as grandes melancolias; mas o tem a História, quando aparece como aquele sonho de loucos contado por um débil mental a que já tem sido comparada; o entendimento racional da História, nas suas origens, em todo o seu desenrolar e nos seus fins últimos, mostrará como toda ela vem, e em todas as suas características, de alguma vez ter suposto o homem que eram melhores os seu próprios planos do que os planos de Deus, de que era melhor mandar do que obedecer, de que, finalmente, valiam mais as suas pobres geometrias a três, quatro, cinco ou n dimensões do que a fundamental geometria divina, a geometria a dimensão alguma. A pobre ideia de que se podia, sem angústia e sem saudade, substituir pela música desenrolando-se no tempo a intemporal música divina. A História vai ser simples quando for entendida; o homem vai ser humilde quando entender a História; quando ela, para ser entendida, se tiver feito geometria.
O mais estranho, no entanto, é que muitos, mesmo sem essa geometrização que trará, pelo entender, a paz, tenham chegado já há muito à mesma ideia simples e fundamental de que é a raiz de tudo ter tido o homem uma visão de si próprio que não era uma visão em Deus, de se ter considerado o homem como um ser separável e separado de Deus. E o que mais tem perturbado tem sido exactamente que tem surgido a ideia e a prática em gente humilde, despida quase sempre de grande cultura e que parece muitas vezes mesmo um pouco inapta à apreensão do que já se tem conseguido avançar no caminho da explicação geométrica.
Foi este espanto dos racionais e dos cultos que fez supor a muitas filosofias que havia uma forma de conhecimento de carácter senão irracional pelo menos arracional, a que logo se deu o nome de intuitivo; quem parecia não ter partido de Euclides ou parecia não poder chegar a Euclides, mas ao mesmo tempo se adiantava aos caminhantes científicos, era logo por eles colocado na categoria dos intuitivos, como se não devêssemos aqui prosseguir na ideia de que, à boa maneira da filosofia chamada clássica, a intuição é ainda conhecimento racional, só que um conhecimento racional tão seguro e claro que não pode sofrer a menor espécie de dúvida. O que principalmente agravava as coisas era que os tais intuitivos se não limitavam aos exemplos, também clássicos, das propriedades intrínsecas dos triângulos; iam a assuntos muito mais difíceis e às vezes ainda bem longe da alçada dos sábios.
Por outro lado, havia uma lamentável tendência para que a intuição, isto é, uma inteligência mais aguda, mais penetrante e, digamos assim, mais longínqua, se manifestasse principalmente em mulheres e crianças, considerados desde sempre, numa cultura que tem sido de adultos e de homens, como de capacidade inferior; além de tudo, havia a tal inapetência para os caminhos longamente trilhados para a ciência: desprezavam-se os homens das botas de sete léguas porque eles não tinham interesse algum em percorrer, por miúdos centímetros, as estradas dos outros. Creio que uma grande e cómica surpresa aguarda em outra vida os que nesta foram suficientes e sábios: a de descobrir que eram apenas inteligentes, e às vezes mediocremente inteligentes, e que as mulheres, que tantas vezes desprezaram, se elevavam, sem esforço e sem orgulho, às regiões do génio; como vão descobrir que terem enviado seus filhos à escola apenas os atrasou na verdadeira cultura. Foram muito modestas, em todos os tempos, as femininistas quando defenderam que as mulheres eram tão inteligentes quanto os homens, porque na realidade o são mais; foram injustos os educadores quando defenderam que as crianças podem entender o mesmo que os adultos, porque na realidade podem entender mais. E se me pareceu sempre haver mais genial concentração na criança que brinca do que no sábio, não é menos verdade de que o facto de haver nas igrejas menos homens que mulheres me pareceu sempre um grande argumento quanto à verdade do catolicismo.
De qualquer modo, se vai ser um grande caminho para a paz o de, pelo paciente esforço dos menos inteligentes ou pela fulgurante chegada dos mais inteligentes, se entender a História do mundo e por ela a nossa posição no dito mundo, e se vai a Paz consistir fundamentalmente em, pela clarificação geométrica da vida, voltarem ao Pai todos os seus filhos pródigos, a grande força de avanço, o grande motor deste passar dos povos não está verdadeiramente nos que se deslocam, mas nos que de alguma forma vão participando do movimento, para que não falte companhia aos que marcham, mas na realidade já há muito chegaram.
São estes os que são desprezados e não se revoltam, os que obscuramente sabem e ninguém consulta, os que ficam anónimos nas grandes obras a que se ligam nomes alheios, principalmente os que sabem que o dever essencial consiste em, com êxito, com reconhecimento ou sem reconhecimento, com agradecimento ou sem agradecimento, ter fá na importância de sua posição, sobretudo na importância de aguentar calado e alegre a carga que vier, porventura achando-a sempre leve de mais, apesar de todo o sofrimento; os que têm esperança na redenção final do mundo e levarão o seu apagamento ao ponto de não dizerem aos outros o que sempre souberam; os que têm a bastante caridade para transferirem sua própria glória para os actos dos outros.
E se tivéssemos que nomear os que assim procedem; se tivéssemos que dizer quem, porque as estrelas estão dentro de si, se roja na poeira; se tivéssemos que apontar os melhores dos santos – veríamos que estranhamente coincide esta santidade com a radical inteligência de que há pouco falávamos. Temos santos entre nós e não os conhecemos porque nos atrapalha o participarem eles tão intimamente da nossa vida e, sobretudo, o tão frequentemente nos utilizarmos nós deles para a nossa vida, mas, se assim não fosse, já teríamos nós dado há muito tempo a mulheres e crianças o lugar que verdadeiramente merecem; e já teríamos entendido por que motivo tão facilmente Jesus se comovia ante a sua fragilidade e a sua miséria.
Agostinho da Silva – Textos e Ensaios Filosóficos II
*As Aproximações, Lisboa, Guimarães Editores, 1960.
sábado, 25 de outubro de 2008
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