B – PRÁTICOS
3 – Do Fazer – Pode ter-se a ideia de que o artista, e usaremos aqui a palavra tanto no sentido académico das Escolas de Belas-Artes, que parecem ter vida resistente, como no sentido, que é do povo, do operário que, através do satisfazer ao patrão, mais ainda à sua arte satisfaz, pode supor-se então que o artista vai lançando no mundo o de que Deus se esqueceu ao construí-lo. Nesta sua posição, seria o criador quem vai revelando a Deus sua infinita riqueza pois ter Deus criado o mundo não é mais do que ter tomado consciência do que era; o que ficou oculto, como em dobras de manto, lho mostra ele. Talvez, porém, lance este pensamento desaconselhável distância entre o pintor e o astrónomo e seja mais razoável que ambos apenas vêem primeiro o que estava oculto aos olhos do vulgo, quer se trate da beleza da florentina, de sempre fixada para sempre nos limites em que a matéria e energia e desejo de vida e saudade de vida divinamente se equivalem.
De qualquer modo, tudo isso surge porque os homens o fazem e, se o princípio, ou a primeira fatal queda, que o mesmo vale, principiou com a consciência, a um segundo princípio o principiaríamos com o Verbo, e a uma terceira queda, a iniciaríamos com a Acção, queda salvadora esta porque por ela podemos voltar ao Indenominado e do Indenominado à Inconsciência, fechando o ciclo. O que contribui para o progresso do mundo, tal como ele se nos apresenta hoje, não é o pensar ou o imaginar ou o fantasiar, mas o fazer. O que não amarramos no feito, máquina, livro, discurso ou vida, se nos esvai em esvaída névoa, e ficamos pior que pastor de nuvem, porque pairamos só, fantasma de zagal, sem um vulto e sem sombra, num límpido céu que, por nos não ver, nem nos acolhe nem nos repele.
Dizia o clássico que do leite não usado se apoja o úbere e se corrompe. Convém, pois, que antes corramos o risco, como o estou fazendo, de ser ou parecer precipitado, impaciente e desconhecedor de suas próprias limitações; alguém depois nos eliminará, nos corrigirá, ou, montado sobre nossos ombros de pigmeu, descobrirá distantes horizontes; mas a nossa marca ou nosso contributo, os deixámos no mundo, antes que a morte nos colhesse, ou a parada vida, pior que morte. Do conselho antigo de ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro, reteremos, agora o essencial: só teremos realmente vivido quando por nós tiver brilhado centelha numa alma, ressoado a palavra do nosso pensamento ou se afirmado o desejo de que haja mais brandas sombras nos desertos do mundo; brilhado, ressoado e se afirmado pelo fazer e no fazer.
Agostinho da Silva – Dispersos
* In Espiral, Ano II – n.ºs 8-9, Inverno de 1965,
domingo, 19 de outubro de 2008
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