sábado, 25 de outubro de 2008

Teocracia

É muito habitual nos text-books americanos ver o autor justificar que se estude sua matéria; as razões são sempre várias e, no entanto, sempre as mesmas, quer se trate de física, botânica, paleontologia ou literatura, de modo que a prosa introdutória podia com vantagem ser constituída por um modelo único em que cada um inseriria o nome da matéria de que se trata. Quase sempre os motivos apresentados são de carácter utilitário: e não é dos menos mencionados o que se põe da seguinte forma: o ser útil e interessante, numa conversa de salão ou naquilo que noutra palavra se denomina cultura geral, não dizer maior número de absurdos do que aquele que actualmente se tolera em sociedade. O que quer dizer o seguinte: que no nosso tempo ainda sobrevive uma ideia de cultura e uma ideia de estudo que teve a sua época áurea na Europa e sobretudo na França do século XVII e se julgava definitivamente derrubada depois do movimento vitorioso da pedagogia oratoriana do século XVIII.
Seja como for o que nos interessa para o caso presente é que nunca se apresenta, para estudar História, aquele que é provavelmente, além do gosto desportivo e desinteressado do querer saber como espectáculo e do outro, que apresentaríamos à religião e à essência mais íntima do teatro, de querer de algum modo tomar parte em toda a batalha, em todo o colectivo sacrifício das gerações passadas, aquele que é provavelmente o mais forte dos determinantes para que se faça recriação do que foi. Como se fazem encantamentos rituais para desassombrar casas, a História devia servir para isso mesmo, para, estudando-a, nos desassombrarmos do passado naquilo que ele já teve de superado. História para que o passado se estenda a uma luz do presente e para que possamos construir um futuro que, lógico com o que esteve para trás dele, marque, no entanto, um avanço. Direi mesmo, marque um progresso. Mas em que sentido um progresso? No único sentido em que a palavra pode ser tomada, quando se trata da aventura humana: no sentido de que se pretende para o homem cada vez maior liberdade para poder ser o que é na essência; por outras palavras, cada vez mais direito de cumprir o que é seu dever, seu único dever; repetindo o que disse já, tanta vez, e direi sempre: o dever de ser santo.
A verdade, porém, é que História, como nós a estudamos, não serve para nada disso. Quando muito, saímos das escolas secundárias e das escolas superiores achando da História aquilo a que chamamos os factos, o que é exactamente o mais incerto e o mais falível no conhecimento da História. Mas não existe no nosso espírito quando acabam de nos educar nem vestígio daquilo que poderíamos chamar uma teoria da História; nada se ordenou numa síntese geral. Nenhum de nós seria capaz de resumir em duas ou três frases toda a história universal que aprendeu. O mais grave, no entanto, é o seguinte: que tudo o que se estudou nos aparece como uma colecção de historietas sem real significado; ou então, como uma série de acontecimentos que só no passado tem sua razão de ser. Muitas vezes se julga que se estudou História como se deve estudar quando, por exemplo, o que já não é mau, se relacionarem acontecimentos, e se mostra como a Cruzada facilita a Comuna, como a batalha de Aljubarrota é um episódio da Guerra dos Cem anos ou com estão em íntimas relações o bloqueio holandês e a bandeira de preamento.
Aí mesmo, porém, a essência escapa. Não se trata já daquela reflexão mais subtil que liga, por um cristianismo fundamental, a Cruzada à Comuna, fazendo-as ver, não como dois movimentos adversos, mas como que dois degraus; do lado das diferenças e não das semelhanças, não se trata já de pôr nitidamente o que distingue Joana d’Arc de Nuno Álvares e de perceber como a Igreja pôde justificadamente condenar a primeira e não teve de levantar, quanto ao segundo, nenhum problema de heresia; como igualmente se não trata de ver porque razão, no fundo de tudo, o holandês civilizado, digamos assim, não deixa coisa alguma no Brasil, a não ser às vezes seu olho azeitonado no Nordeste, e o tal português preador lança seus fundamentos do que será muito possivelmente a base futura de um renascimento católico.
O que nos interessaria sobretudo na História seria dar conteúdo actual, ou melhor, conteúdo eterno ao que acaba por aparecer como um empoeirado, como um arqueológico episódio do passado. Reflexão que veio agora a propósito de alguma coisa de bem definido e de bem nítido, do que é talvez um problema fundamental do nosso tempo e de que, no entanto, todo o aluno que passou pelo curso secundário se recorda agora com olho ainda sonolento e memória mais sonolenta ainda, se é possível. Refiro-me àquelas lutas entre o Papado e o Império, que jogavam imperadores estranhamente vagos contra papas mais vagos ainda e de que surgia talvez como única visão mais nítida, porque se podia figurar como uma espécie de gravura, o episódio de Canossa. E, todavia, trata-se simplesmente do seguinte: de saber se o homem se deve considerar apenas corpo e ter um governo puramente temporal; se se deve aceitar como formado de uma e outra coisa e deve ter governo misto. E aqui, com duas possibilidades. A de ser esse um governo misto por acordo entre a autoridade espiritual e a autoridade temporal; ou a de os dois governos se reunirem na mesma pessoa, ponhamos, para sermos mais gerais, na mesma entidade.
O grito comum nos tempos modernos é o de que se deve separar. O que se entende perfeitamente do lado dos livres pensadores, os quais, quando muito, toleram que haja poder espiritual e estão mesmo dispostos, por amor da política e do espírito laico, a entrar naquilo que se chama o regime das concordatas. Mas que só se entende do lado dos que não são livres-pensadores, concedendo que a sua religião é uma religião de superfície, tão de superfície que aceita haver domínios de vida humana em que se pode perfeitamente dispensar a intervenção divina. Enfim, entre livres-pensadores que, em geral, ficam livres para não pensar coisa nenhuma, e religiosos para os quais em grande parte das vezes religião é apenas política, se firma um grande acordo: o de que estão todos dispostos a tirar o máximo que puderem da vida material e que a outra, a vida do espírito, se pode perfeitamente relegar a cerimónias sem real valor.
Tudo isto afinal traz a marca de uma ciência meio simplista que principia talvez como os anatomistas italianos e se firma quase até nossos tempos, a ciência que repousa sobre uma ideia de separação entre corpo e espírito; e traz igualmente a marca de que houve um momento de história da Humanidade em que as atenções se tiveram de voltar principalmente para a organização da nossa vida material e tão primacialmente que se justificou, contra o Salmista, a usura de Calvino e de Bentham, e se justificou, contra Cristo, o princípio da livre iniciativa e da concorrência económica. Hoje, porém, as coisas mudaram: o anatomista voltou a acreditar no espírito: não há uma medicina que se chama mesmo psico-somática? E mudaram as coisas também no outro campo: não se começa a perceber que a concorrência universal não veio a dar outra coisa senão uma universal falência?
Mas, coisa curiosa: ainda não se reparou talvez em que o país que todos apontam como um modelo de política não seguiu de jeito nenhum a tal linha de separar governo temporal e governo espiritual e, tendo cometido vários erros no que respeita a religião, não cometeu o erro essencial, isto é, o de deixar de ser religioso. Refiro-me naturalmente à gente inglesa, na qual o rei é papa, embora por motivos práticos, e não se esqueça que a instituição principiou porque um rei estrangeiro não sabia bastante inglês para poder presidir a conselho de ministros, embora, como dizia, por motivos práticos, se tenha confiado a um primeiro-ministro o encargo de administrar; na qual o Parlamento, dado este princípio geral, é na realidade o capítulo de uma ordem religiosa; em que, não havendo constituição, o país é, no entanto, constitucional porque há, pela inviolabilidade espiritual dos outros homens, pela sua pessoa, um respeito de carácter religioso; e em que, mesmo nos factos que passaram a anedota, como, por exemplo, o do inglês que se veste a rigor para jantar sozinho na selva, há um respeito litúrgico pela vida, que infelizmente nós perdemos desde os fins da Idade Média; em que, numa palavra, a mais perfeita das democracias é ao mesmo tempo a mais perfeita das teocracias.

Agostinho da Silva – Textos e Ensaios Filosóficos II
*As Aproximações, Lisboa, Guimarães Editores, 1960.

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