sábado, 25 de outubro de 2008

Teologia humana

Creio que deveríamos continuar a considerar, como texto fundamental, o de que foi o homem criado por Deus à sua imagem e semelhança, entendendo-se claramente que, ao contrário do que se não deveria supor e se tem suposto, não significa ele que seja Deus um homem, só que maior e mais poderoso, mas sim que é o homem um Deus; Deus ainda não realizado e em acto, mas um Deus sempre em potência; um Deus cuja divindade consistiria essencialmente como que no direito e no dever de ser Deus, como que num perpétuo encaminhar-se para o formular de uma lei que só tivesse uma intenção e um artigo; o de que é sua única obrigação a de se não regular por mais norma nenhuma que não seja a da mais absoluta liberdade.
A qual se manifestaria primeiro por estar livre de todos os sonhos de futuro, os quais só vêem de ser o presente pouco menos do que insuportável; quando dizemos que passamos grande parte da nossa existência sonhando o futuro, erramos; se estivéssemos sonhando para nada precisaríamos do futuro; a vida nos seria um sonho e nele tão plenamente nos realizaríamos que talvez a morte nos não aparecesse como uma quebra da vida e um seu desastre, mas com a garantia de que o sonho continuaria para sempre; projectar o futuro é apenas repelir o presente: o que não faremos quando o tivermos tão satisfatório como teologicamente o tem Deus, para o qual outro tempo não há; é, portanto, na tessitura do presente que nossos bordados deverão lançara o seu matiz: enquanto estamos vivos; única forma de não morrer.
Sinal seria também de liberdade livrarmo-nos da História; provavelmente só a estimamos e nos preocupamos com ela por causa dos nossos problemas do presente; a Grécia ensolarada e luminosa, entendendo-se o sol como a luz de fora e a luz como o sol de dentro, foi talvez apenas uma fantasia de refúgio para alemães anuviados por seus nevoeiros físicos, mas, sobretudo, pelos metafísicos; como a cartesiana o tem sido de franceses apaixonados pela inteligência pura, mas que têm, afinal, diante de si a lamentável realidade de sua classe média e de suas bem redigidas meditações sobre o nada; miséria do presente nos fazem rever glórias do passado, ou inventá-las; e quantas vezes se invoca História como dantes se falava de passarinhos nos fotógrafos: para distrair crianças; só que hoje não disparam as velhas máquinas de carapuço; disparam os canhões.
Na plenitude do presente ao presente iríamos criando, como criança, cuja vida se passa na realidade do irreal; aí se marca a sua maior diferença dos adultos: para ela o que existe é o presente; para o grande, que se julga melhor, o tempo que passa é apenas um intervalo, pelo qual nem dá, entre a recordação e o projecto: lhe vai a vida correndo do que já lamenta para o que lamentará dentro em pouco; a criança, porque o vive, suspende o tempo; fixado este ponto, poderíamos dizer que afinal o homem é um Deus que regride: divino como criança, e foi talvez esse o pensamento-base de São Francisco quando pela primeira vez imaginou e realizou os seus presépios, nem diabólico se torna quando cresce, que nisso haveria ainda qualquer grandeza; torna-se monótono e, se entra na categoria dos notáveis, discursa e inaugura fontanário; se fica nos humildes que o são contra vontade, pasma para a inauguração do fontanário; e se considera compensado de tudo se ainda a fotografia o apanhou, de esguelha, entre a fita e a água.
Mas os tempos virão, os tempos de ser Deus; virão talvez por linhas tortas, como é costume; virão pela colaboração de todos, mesmo dos que são contra, porque é o mundo máquina muito bem montada em que todas as rodinhas trabalham em conjunto e nenhuma, mesmo que o pretenda, foge a seu eixo e à sua função; um dia os homens, quando forem deuses, ou, pelo menos, mais deuses do que são hoje, entenderão isto e deixarão de escrever História que absolva ou condene: descreverão apenas, explicarão e justificarão; como nenhum relojoeiro é a favor do escape contra a corda: tudo é peça do relógio, e indispensável como peça. Pois serão deuses: sem uma política que os force a ser manhosos como escravos; sem religiões que se estabeleçam sobre o medo; e sem escolas que logo de princípio, pela carteira, a cópia e o ditado, nos modela para as facilidades do trânsito e nos abortam para o infinito Deus.

AGOSTINHO DA SILVA – Textos e Ensaios Filosóficos II
*«Teologia Humana», Vida Mundial, n.º 1637, 23 de Outubro de 1970.

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