domingo, 19 de outubro de 2008

QUINZE PRINCÍPIOS PORTUGUESES - 1

A – PRIMORDIAIS

1 – Do Total – Parece que tem sido considerado o supremo acto de coragem, na civilização a que chamamos nossa, o que consiste em escolher; é aí que se exercem a clareza de espírito, que dá de si a geometria, como base de muitas outras construções; o culto da alma, com algum desprezo, algum ou muito, pelo corpo; e aquela segura, nítida linha de vontade com a qual se constroem as políticas, as fortunas e as vidas notariais. Escolher significa naturalmente tomar e pôr de parte; no tomar, quem o censuraria, pois que tudo é de Deus; no rejeitar, porém, alguém poderia denunciar pata ou mão do diabo que Deus vê como parte sua, mas do diabo que nós vemos como representante do que foi resolvido não escolher.
Para portugueses restringiremos o campo, não para discutir, porquanto a discussão só é útil quando se exerce com alguém que já está de acordo connosco (senão onde haveria linguagem comum?), mas para expor, que outra não é a obrigação de quem sente o que pensa já lhe ser alma e corpo, ou, juntando-os, espírito; e aqui se abriria um parêntesis para dizer que somos à imagem e semelhança de Deus da Trindade quando já divididos, mas, quando unidos plenamente, à imagem e semelhança do Espírito Santo, o gerador imprevisível. Restringiremos, pois, o campo, e perguntaremos se, para portugueses, valeria a pena continuar o diálogo, que parece eterno, mas que só começou com a descida do indo-europeu para o Mediterrâneo, o diálogo entre Platão e Aristóteles, entre as essências fora do sensível ou só no sensível existindo.
Está a igreja muito certa não condenando nem um nem outro, embora, por caridade para povos que continuavam fundamentalmente mediterrânicos, se tenha inclinado a Aristóteles, e embora, para lutar com uma hierarquia que, por estar ao lado dos ricos (e onde havia ela de estar quando se tratava, como uma necessidade humana indispensável, de construir o capitalismo moderno?), lhes impunha o deixar de ser pobres, tivessem os franciscanos continuado na linha platónica. Platão e Aristóteles se reúnem sem contradição, como complementares e indispensáveis um ao outro, num Deus, já não pessoa da Trindade, mas reunião indefinível, supraconceptual, de todas elas três; se reúnem num único Deus total e verdadeiro que existe: o que, não sendo, vai sendo o quando, o como e o enquanto somos. A esse Deus, sem culto, cultuaremos com todo o culto; em todo o culto.
Agostinho da Silva - Dispersos
* In Espiral, Ano II – n.ºs 8-9, Inverno de 1965.

Sem comentários: