Muitos motivos se juntaram e muitos tempos confluíram para o que já se tornou, sob o nome de crise da Igreja, tema fácil de artigos, assunto de uma biografia que mal se domina e pretexto pronto para toda as pequenas conversas sem propósito definido e sem seguimento que se veja; na realidade, apontam-se crises, desde a puramente doutrinal ou teológica, com as discussões sobre a natureza de Deus ou sobre o interesse da relação que com ele possa ter o homem ou até sobre a sua existência como que ligada à história admitindo-se-lhe a vigência no princípio dos tempos, vendo--o depois como cada vez mais se afastando, ou sendo afastado, de sua criação, até desaparecer como figura inútil para a harmonia do cosmos ou a paz da alma; com passagem pela crise sobre historicidade da Igreja e de suas concepções, revendo-se a documentação sobre os santos, com as consequentes eliminações do calendário, e pondo-se outros conceitos ou determinações, por exemplo a do celibato sacerdotal, como puramente em relação com um definido e ultrapassado estádio de organização, não como ligado à vocação ou exigido pelo exercício; finalmente se chegando à crise que mais impressiona o público e levanta problemas para quem se encarregou de manter a ordem, a de um clero jovem ou de uma amadurecida hierarquia que reclamam intervenção activa da Igreja nas questões económicas, sociais e políticas, com decidida defesa dos direitos dos pobres, ao contrário do que era hábito praticar-se; dos homens pobres e das nações pobres.
Perante o que, em termos muito brandos, poderemos definir como a perplexidade das autoridades católicas, levanta-se a perplexidade dos fiéis e não deixam naturalmente de aparecer, nos que não são autoridade nem fiel, no público de outras religiões ou no agnóstico ou no indiferente, perguntas não sobre o passado da Igreja mas sobre o seu presente e, principalmente, sobre o seu futuro; para uns, talvez mais lidos em história e que se lembrem talvez de toda a luta contra as heterodoxias nos primeiros séculos de vida da Igreja ou da grande crise luterana do século XVI, trata-se de uma tempestade superável, a que, por adaptações, concessões e reformas, se irá seguir um patamar clássico de noções assentes e de procedimentos que não ponham problema algum; para outros, trata-se, e na maior parte das vezes, desejadamente, de uma crise final; incapaz de se adequar ao mundo novo que surge, ancilosada por hábitos que o repouso criou, travada por sua armadura de prestígios e pompas. O catolicismo desapareceria, como desapareceu a religião egípcia ou sumiram os cultos assírios, reduzir-se-ia a uma minoria sobrevivente como o budismo na Índia e o judaísmo em nosso mundo mais próximo, ou até mesmo seria apenas um caso, digamos local, de uma superação actual da religiosidade que tem sido característica humana.
Seja como for, tem a Igreja pela frente uma tarefa complicada, que seus membros mais conscientes e de maior fé verão como menos entregue ao talento, boa vontade ou habilidade de homens do que às inspirações de divindade ou de santidade que o corpo místico e o corpo prático souberam receber e seguir; como, segundo o povo, escreve Deus direito, mas por tortas linhas, poderão vir as soluções de formas muito diferentes daquelas que se estão pensando ou antevendo; parece, no entanto, que assentariam em duas bases, a de que podem perfeitamente ser dispensados da Igreja os que a ela foram por medo ou conveniência, que medo é, e a lembrança de que catolicismo, quer, etimologicamente, dizer universalismo e, portanto, um ecumenismo que se não importe apenas com cristãos, mas vá aos muçulmanos, aos animistas, aos budistas ou aos xintoístas, e, ouso dizê-lo, aos agnósticos e aos ateus, ensinando a todos fé na vida, que Deus é, esperança no futuro, que Deus já é, só que ocultamente a nossos limitados olhos, e uma caridade que se desprenda do material entregue esse, com melhores resultados, à economia e à política, e se debruce sobre os problemas espirituais do homem, compreendendo a todas as angústias e amparando a todos os desvios.
Parece, porém, que o mais grave de tudo não é a crise que possa haver dentro da Igreja, limitada afinal a alguns milhões de homens, mas a que, fora dela, há quanto a ela, e que abrange, essa, biliões de homens; em cada nação teoricamente cristã são muitos os que não acreditam mais na sinceridade da Igreja, apoiam sem discutir todos os que vão contra ou a deixam, e vêem todas as medidas de compreensão de novos tempos como simples habilidades políticas, destinadas a fundamentalmente conservarem o poder e manterem o lucro; fora das nações cristãs, os povos de Ásia ou África, que sentiram em sua carne o missionário que precedia o comerciante e o soldado, ou os povos da América, para os quais a Igreja esteve sempre ao lado do tirano local, igualmente olham consagrações ou visitas ou apoio à libertação como puro jogo estratégico de influência a guardar ou aumentar; o difícil para a Igreja, vai ser persuadir o mundo de que seu proceder é de real conversão, com arrependimento e bom propósito; confissão geral, penitência e comunhão dos santos, eis o que muitos reclamam, esperam e desejam, confiados na divindade da Igreja; que a Deus os restituiria, lançando-os pela única estrada em que plenamente podem ser homens: a de superar humanidade.
Agostinho da Silva – Textos e Ensaios Filosóficos II
*«A difícil Prova», Notícia», n.º 574, 5 de Dezembro de 1970
sábado, 25 de outubro de 2008
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário