sábado, 25 de outubro de 2008

Sobre a ideia de Deus

Entre as várias e muitas tendências minhas decerto reprováveis está a de que, quando algum amigo me aparece com ideias que coincidem com as minhas, ou com as quais podem as minhas vir a coincidir, e vejo probabilidades de que o dito amigo algum dia as comunique, ou falando para grupo agora muito em moda, ou escrevendo, arquivo logo a minha própria obrigação, se a havia, ou meu próprio apetite, que não é muito frequente, de eu mesmo o fazer. É isto o que tem acontecido com a ideia de Deus; como o que se insere na, ou é a base da teologia de Frei G.H. a tal respeito, é mais ou menos o que eu penso ser certo, e só por isso suspeito logo de que possa estar errado, vou-me remetendo a um prudente, sábio ou apenas confortável silêncio, esperando que nosso frei breve diga o que nos parece verdadeiro em seus Cadernos Teológicos, agora iniciados sob o título geral de Goa, o que será extravagância de nosso brasílico frade, mas de qualquer modo demonstra seu amor e, a meu ver, sua compreensão dos deveres de Portugal como nação ecuménica, isto é, de ter que ser uma nação ecuménica.
Mas há outra razão que me tem feito guardar silêncio sobre o assunto, imitando o que fez aquele lendário, ou não, rei romano, ou etrusco, que para o fim da vida adorava apenas a deusa Tácita, e não imitando os mestres zen para consumo da Califórnia, que, com as melhores intenções do mundo e aumentando ao mesmo tempo a felicidade espiritual de Mr. Jones e o depósito no banco, nos declaram que sobre o Absoluto nada há que dizer, e o dizem abundantemente em volumes anuais desprendidos e gordos. É que efectivamente só podemos falar do que é relativo, daqueles sujeitos a que podemos pregar seu atributozinho e que imediatamente limitamos; quando digo que uma árvore é um pinheiro impeço-a de ser cedro, quando digo que é um pinheiro alto impeço-o de ser baixo, e assim sucessivamente, como se dizia nas receitas de extrair raiz quadrada, receitas que explicavam tudo, excepto por que motivo se chamava raiz e se chamava quadrada; oxalá a matemática moderna, hoje como diria o Garrett, tão fashionável, o ponha claro nas infantis cabeças que aprendem conjuntos e continuam sozinhas.
Pois é aqui que efectivamente começam as minhas atrapalhações. Se eu digo que Deus existe, segundo os nossos pobres, ignorantes ou pelo menos limitados critérios, lá se vai a ideia de que Deus não existe, também segundo os mesmos limitados, ignorantes e pobres critérios, já não sabendo eu que fazer de meus irmãos ateus que aparecem no mundo tanto quanto eu, sobre os quais chove e faz sol como sobre mim e que, coitados, ainda têm de aturar os que dizem acreditar em Deus, ou acreditam mesmo, que aqui faz o hábito o monge, apenas porque têm medo de escorregar na rua e quebrarem a perna ou de lhes ir pelo petróleo abaixo o juro da ESSO.
Diz-me Frei G.H que posso tranquilamente continuar a pensar que Deus, simultaneamente, existe e não existe. Veria então Deus, muito de acordo com uma ideia da física cosmológica de nossos dias, e não me serve para nada um Deus que não resista à ciência, como o átomo inicial que explode em mundo, logo que, como não podia deixar de ser, por estar nele incluída a consciência, toma conhecimento de si mesmo: ao tomar Deus conhecimento de si próprio, se vê, ou é, sujeito e objecto, Pai e Filho, com um intervalo imediato de tempo e de espaço, como me sucede a mim quando me vejo ao espelho, ou me penso espelhado; mas, como acontece a mim e à minha imagem, a semelhança os liga, a identidade os une; e isto, que só existe quando Deus existe e porque é Pai e Filho, sujeito e objecto, chamarei eu de Espírito Santo.
Pondo de lado esta questão do Espírito Santo, para não exaltar os meus amigos de esquerda que me crêem místico, oxalá o fora, porque estaria então bem seguro de inteligência, de espírito prático e de não cair nunca em catecismos, pretos ou vermelhos, e para não descansar os meus amigos da direita que poderiam julgar, confundindo este meu Espírito Santo com a pomba amestrada que durante tanto tempo, mais com artes de corvo, separou a Igreja do Cristo que a fundou, direi agora, acumulando as enormidades, mas sempre com o acordo e, vamos lá dizer, a protecção de Frei G.H., que no momento em que o mundo explode de Deus, ou Deus explode em mundo, deixe ele de existir como Absoluto e, portanto, como Deus; é, já, a Trindade; e dessa, claro está, posso eu falar; o que não vale a pena, pois de outra coisa não têm tratado os teólogos.
A complicação agora é que penso que esta explosão não se deu de uma vez para sempre, mas se está dando a cada momento, e já dizer momento é pôr o tempo como discreto, o que só aceito em relógios, os quais, embora se saiba, é bom dizê-lo, não medem tempo, mas espaço; quero eu significar na minha que tempo e eternidade coincidem, que Deus e a Trindade são simultâneos e que, em física, a expansão e a contracção do Universo se dão ao mesmo tempo. Se assim for, ou fosse, teríamos aqui uma abertura para não aceitar a lei de evolução: como a energia aparece por quantidades discretas, os quanta, o Universo inteiro apareceria igualmente por quanta: um bicho não vem de outro bicho, aparece depois de outro bicho, e já o depois é mesmo termo prático nosso; coisa que também, acho eu, mas sempre com medo de dizer bobagem, aponta física quando não sabe mais em certos fenómenos que surpreende que coisa vem antes e que coisa vem depois ou se tem ainda algum sentido dizer antes e depois. Se isto tudo fosse certo, volto ao ponto, também existência de instinto não poria problema; em cada quantum de Universo tudo estaria logicamente coerente, engrenaria direitinho, Psamocero saberia sempre como caçar Migália.
Poderíamos então supor que o determinismo é seguro em cada e para cada momento do mundo e que, de cada um desses momentos, posso eu dar uma imagem matemática, mas que, ao retrair-se o Universo, ao passar a Trindade a Deus, ao passar o relativo ao absoluto, restabelece-se como lei a liberdade e o que depois surge pode ser totalmente diverso. Há a cada momento estradas de Damasco: um homem se aniquila, outro diferente, até contrário, surge. Não se é criminoso porque se quer, não há à nossa volta o mundo que se quer: mas não é impossível que, por se querer, por uma concentração suprema do espírito, se possa pular de quantum e nos transformemos a nós e ao mundo. O Universo, a nós nos incluindo, não é estático: vai e vem, sobe e desce: perder o quantum que se deseja é o mesmo que perder, por falta de pontualidade ou de atenção, o vaporzinho de Cacilhas ou a barca de Niterói, vamos lá ser ecuménicos, e o elevador de casa que a minha felizmente não tem.
Já agora, que me provocaram, praticamente me intimaram a falar de Deus, direi mais que não compreendi nunca haver contra a existência de Deus o argumento da existência do mal. Que Deus absoluto seria esse, que totalidade seria essa, se não pudesse aí haver aquilo a que chamamos mal e aquilo a que chamamos bem, se não houvesse a gazela que sofre a dentada do leão e o leão que da gazela vive; para todos existe o Diabo, em bicho o predador, em planta o ruminante, em homem o a que chamamos vício; para Deus não, nada, para Deus, é isto ou aquilo, embora o possa ser para a Trindade; tudo, para Deus, só é, sem isto nem aquilo; para o Pai é o Diabo, ou era um anjo inteligente como todos, e de iniciativa como nenhum, e a quem o Pai achou que, apesar de tudo o que podia suceder, e sucedeu, inaugurando História, e pergunto se já se pensou bastante em que é o Diabo o pai da História e deveríamos, portanto, fazer o possível por a abolir, a quem o Pai achou que, apesar de tudo, era melhor conceder liberdade de imprensa e até liberdade religiosa, de cujas consequências só João XXIII conseguiu ir livrando a Igreja.
Bom, afinal fiz como os tais do zen e ao contrário do Numa; me alonguei bastante sobre o Absoluto; mas quero repetir que dele se não pode falar: ou o sentimos ou o não sentimos; levita-nos, como a Santa Teresa e a tanto outro santo, cristão ou não cristão, pois muita gente julga que só há santos cristãos, se somos leves; se somos pesados, como me sucede a mim, ficamos com os dois pés, e às vezes com suspeitas de quatro, bem pregados no chão; tomem nota disto os realistas que suspeitam de místico tudo que é apenas inteligente e os idealistas que defendem o ideal para os outros e o real para eles: real de res, coisa, e real de rex, rei.

Agostinho da Silva – Textos e Ensaios Filosóficos II
«*Sobre ideia de Deus», in Pinharanda Gomes, Teodiceia Portuguesa Contemporânea, Lisboa, Sampedro, 1974.

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