domingo, 19 de outubro de 2008

QUINZE PRINCÍPIOS PORTUGUESES - 15

C – FUTUROS
15 – Dos Abraços – Se em grande parte se não tivessem as igrejas transformado em repartições públicas ou se mais vivo fosse nos povos o amor de Deus, certamente estariam abertas dia e noite e a toda a gente acolheriam, fosse ela ou não de seu próprio credo. Mas a estas igrejas lhe daríamos portas estreitas, não tanto como crivo de entrada, mas para que não passassem os homens tão indiferentes como passam, cuidando pouco da salvação dos outros, muito da sua, mas indo até com grande frequência em busca de bênçãos para sua perdição. E destas portas estreitas partiriam as pontes, não só aquelas de que falámos, que se fazem de povo a povo, se estabelecem em tratados, e em que quando muito comungam as bandeiras, mas as que se lançam mais profunda e duradouramente de homem para homem, sem penas de ouro, ou clarins ou taças.
Portugueses de todo o mar, espanhóis de toda a terra, ingleses de toda a ilha, talvez com franceses, agora, segundo parece, se divorciando dos alemães, sempre soberbo gado, e porventura não apenas no sentido épico, talvez com africanos, com indianos, com amarelos, poderiam ainda salvar o mundo e apontar-lhe caminhos do futuro, que mais estão no desenvolvimento interior do que no aparelhamento prático que terá, por muito mérito, o de liquidar para sempre a fome, o desabrigo ou a doença. A Igreja Ecuménica, nós a poderíamos pregar melhor que ninguém, pois soubemos conviver, nos tempos que verdadeiramente foram nossos, com judeus e mouriscos, propusemos que budismo e cristianismo se fundissem, sonhámos templos shinto de ritual cristão; fomos do Espírito Santo muito mais que de Deus regendo ou de um Deus morrendo. A República Universal, nós a poderíamos propugnar melhor que ninguém porque soubemos unir, também nos tempos nossos, de concelho a concelho, as diversidades do mundo. O Tudo para Todos, nós o poderíamos organizar melhor que ninguém, que essa foi nossa vida, quando a tínhamos, em plaino ou serra.
Sempre quando o tempo era nosso; quando era nossa a vida; quando o Rei não morrera. Mas o Rei está apenas oculto, na Ilha de encantos que é cada um de nós, e espera que a ele nos submetamos para que surja e salve; basta que acorde na alma de um de nós, para que também desperte nas almas que se perdem de tristeza e de dó pelas aldeias da Península, pelas savanas de África, pelos palmares da Índia, pelas favelas de Paris ou pelas avenidas da Alemanha. Basta que num se erga; o Povo é ele e dele. Forças nenhumas se lhe poderão opor, se ele próprio não provocar a batalha e se toda a sua coragem se concentrar, não em agredir, mas em se afirmar e em ser pacientemente, mas sem concessões, persistentemente, mas sem dureza, todo na tarefa, mas sem interesse seu, o guia que se espera, heróico e lúcido, ousado e calmo, aventureiro e lento. Todos em El-Rei, El-Rei em todos; e sem Rei nenhum, que o não precisamos para nada, pois o Rei o somos.
Agostinho da Silva – Dispersos
* In espiral, Ano II – n.ºs 8-9, Inverno de 1965.

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