domingo, 19 de outubro de 2008

QUINZE PRINCÍPIOS PORTUGUESES - 4

QUINZE PRINCÍPIOS PORTUGUESES
B – PRÁTICOS

1. – Do Viver – A exortação última de El-Rei a que morressem devagar pode, para os historiadores aos quais só o passado interessa, e que são os menos representativos para Portugal, cuja intenção e cujo destino é o de viver para o futuro, pode certamente ser interpretada como apenas a expressão do desejo de que durassem o mais possível para que mais inimigos sucumbissem. Ia ele, porém, desaparecer dos olhos de seu povo e lançar-se no mistério que ao povo tem sido a vida, no meio da morte, luxuosa de sensatez, equações e saída nenhuma, que tão abundantemente lhe tem sido proporcionada por aqueles cuja saudade e cujo desespero foram sempre os de não terem nascido nas boas terras nacionais, eficientes e bancárias que vão além dos Pirinéus. Talvez, pois, fossem as palavras para seus irmãos cavaleiros, mas para a peonagem que ficava para aguentar todas as consequências da momentânea derrota e ajudar, esperando, a vitória futura.
Tenha El-Rei, pois, a satisfação de nossa obediência e saibamos morrer devagar. Duremos o mais possível, no sentido físico da palavra, saibamos dar a todos a suspeita de que talvez sejamos eternos e estejamos dispostos a esperar por qualquer tempo que venha, para que de novo, repitamos o poeta, se levantem as ameias e bandeiras ondeiem na fria aragem das manhãs. Vivamos com o mínimo e, se possível for, com a ausência total das prisões à morte. Tenhamos os ascetismos que levam os trapistas a viver cem anos; não nos atrapalhemos com as mecânicas ou as competições electrodomésticas ou com a conquista de nível de vida que obrigam a pôr o coração, e em vários sentidos, na linha das primeiras falhas dos civilizados, e venham de dentro de nós próprios, do em que somos Deus agente, os únicos tranquilizantes que não obrigam os psiquiatras a tratar de um entre cada quatro de nós. Sejamos, antes de tudo, bons animais à superfície da terra, animais de pouco peso, mas de músculo certo, de nervo só vibrante se tocasse, de sangue fluindo em desimpedidas artérias.
Tenhamos sobre nós a disciplina que se origina não do medo dos coronéis, mas do amor e da apetência das cavalarias que aí vêm. Se renunciarmos, o faremos, não por falta de paixão, mas porque outra mais alta nos prendeu. Aprendamos a reunir o abandono que nos descansa com o tenso esperar do momento de acção. Tratemos o nosso corpo com o cuidado amor do atleta que se prepara, e façamos dele o perfeito instrumento para que cumpramos o nosso primeiro dever: o de durar.

Agostinho da Silva – Dispersos
*In Espiral, Ano II – n.ºs 8-9, Inverno de 1965.

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