Talvez porque mais conheço a América, tão discutivelmente chamada Latina, onde o fenómeno ganhou proporções de catástrofe, me impressiona sobretudo, dentre as crises digamos institucionais da Igreja Católica, a que se refere ao que se denomina falta de vocações; cada vez menos jovens se encaminham para os seminários, dos que lá entram cada vez menos se formam e ordenam, de modo que as paróquias se tornaram de uma extensão tal que ficam os fieis sem amparo e os padres esgotados de as percorrer a lombo de cavalo, e ainda quando tal é possível; para quem não acredita na economia divina da Igreja e atenta, ao mesmo tempo, no crescimento de outras Igrejas cristãs ou do espiritismo ou dos cultos afro-americanos, a resposta a perguntas que se façam aparece clara: a Igreja se dirige a seu fim, não é eterna, como se julgava, outras a estão ultrapassando, ou paga então, morrendo, faltas que seus críticos acham não só demasiado humanas como também demasiado numerosas; para quem, pelo contrário, vai por essa economia divina e olha a Igreja muito menos pelo seu lado institucional do que como o corpo místico de Deus no Cristo, a reflexão a fazer é a de que, não podendo seu Esposo abandoná-la, não haverá falta de padres, mas de católicos, que a proporção continua a ser a certa e que está ainda indo à missa, ouvindo sermão e reclamando sacramento muita gente que apenas o faz por costume, superstição ou conveniências de acesso social.
Por outro lado, estão abandonando a Igreja muitos padres já formados, alguns com muito ano de devoção, alguns com altos graus eclesiásticos, o que confirma, para os agnósticos ou para os de outras correntes religiosas, cristãs ou não, que a Igreja falece e para os crentes na inspiração divina que o número de verdadeiros católicos é ainda menos do que se pensava porque, para que se mantenha a proporção exacta, não basta que os seminários vejam diminuída a sua frequência, é necessário também que saiam muitos dos sacerdotes que já existiam; acresce a esta reflexão, tanto para uma como para outra corrente, mas sobretudo para a segunda, que mais interesse tem de atender o que se passa, que muita gente deve ter no passado ido para a Igreja, para ser padre, muito mais por motivos económicos do que por irrefreável vocação; o seminário era uma escola barata ou gratuita, mantinha o aluno interno, o que aliviava igualmente o orçamento familiar, aqui pura imagem, porque os miseráveis não têm orçamento, têm apenas fome e desespero, e ainda dava às famílias humildes a certeza de que a missa nova lançava o seu menino na carreira do poder e que em breve o veriam nos palanques de festa ao lado das autoridades civis e militares, nem sequer naturalmente lhes passando pela cabeça o problema de se era esta ou não atitude cristã; ora, com os países lançados no caminho do desenvolvimento, outras perspectivas se abrem e novas economias, aliás ainda bem frouxas, incitam a carreiras novas; e aqui está porventura a palavra exacta: para muitos era a Igreja uma carreira, quando devia ser a renúncia a qualquer carreira, a não ser a que levasse à Cruz; mas sucedia aqui o que sucedia noutros tempos bem antigos, quando os exércitos eram de mercenários; tratava-se de um modo de vida, não de uma disposição para morrer.
Acresce a isto que uma crise institucional e doutrinal se veio somar a tudo; os adversários da Igreja se rejubilam, embora o possam aplaudir por conveniências políticas ou por convicção pessoal, com o facto de se discutir tão ardorosamente se padre deve ou não casar, como se casar fosse um dever, se pode ou não pode casar, como se alguma vez alguma lei tivesse proibido alguém de fazer alguma coisa, coitada da lei que apenas pune quem faz uma escolha diferente da que ela fez; ou com o facto de se discutir se um catecismo feito com aprovação do bispo é ou não é cristão, quando talvez se devesse discutir se afinal o Espírito Santo, que inspirou o bispo, não perceberá mais desses assuntos do que os leigos ou, se há opiniões diferentes de outros homens também inspirados, se não significa isso que o Espírito se deleita com a variedade de opiniões, ou até se será realmente cristão que haja catecismos, quando as autênticas certezas nunca vêm de fora, mas de dentro de nós nascem e crescem; ou com o facto de se discutir se o cristianismo é divino ou humano, se Deus está existindo, se o padre deve consolar os miseráveis ou protestar contra a miséria, como se ainda se pudesse duvidar de que o mundo é isto e aquilo, de que a Cristo, como homem, cumpria afirmar a vida, e, como Deus, morrer às mãos dos grandes, e de que, quanto a miséria, o que o padre devia fazer era consolar os cegos poderosos que não querem abrir os olhos e ver a luz, que bem precisam esses de misericórdia, e repetir uma e outra vez ao padre que nuvem pode, de vez em quando, tapar o Sol, mas que jamais o impedirá de nascer.
Talvez houvesse, quanto ao conjunto, que formular uma hipótese: a de que a Igreja está apenas atravessando uma garganta de serra, de que está somente sofrendo, como lhe compete, sua própria paixão, de que, crucificada, ressurgirá, não já para as limitações da terra mas para toda a amplidão dos céus, não já companheira dos Estados mas servidora dos homens e querendo não já somente uma sociedade justa, que isso o farão os homens, mesmo sem ela, mas uma sociedade de homens justos, isto é, santos; de homens que entendam a todo o homem e a todo o veja como irmão e até como irmão superior, qualquer que seja a raça ou o credo; que tenham qualquer problema material dos outros como sua pungente aflição de espírito; que possam dispensar o sinal exterior do sacramento por serem de sagrada estrutura; que se digam católicos, isto é, totais, por estarem dentro deles, com eles, o muçulmano e o budista; que se digam apostólicos por todos os dias, infatigáveis, se pregarem a si próprios que devem ser melhores do que são; que sejam romanos por quererem, alargando o ideal de Roma antiga, de que deveriam ser herdeiros os homens que falam português, que seja todo o homem cidadão do mundo: que passemos da província ao Universo.
Agostinho da Silva – Textos e Ensaios Filosóficos II
*«Desfiladeiro», Notícia, n.º 583, 6 de Fevereiro de 1971.
sábado, 25 de outubro de 2008
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