domingo, 19 de outubro de 2008

QUINZE PRINCÍPIOS PORTUGUESES - 2

A – PRIMORDIAIS

2. – Do Mistério – Saudou-se muito, como um grande progresso para católicos, o único rebanho que ainda mantinha no a que chamam religião alguma coisa do que o cristianismo foi de início, isto é, oriental e mediterrânico, contrapondo-se ao protestantismo, geométrico, moral, cesarista, capitalista e útil; saudou-se, pois, muito, a sua modernização, quero eu dizer a sua falta de coragem para se manter o que sempre deveria ter sido, sonhador, fraterno, anarquista, amoroso dos lírios do vale e das aves do céu, inútil, sobretudo inútil; tudo foi feito de muito boas intenções, as tais, mas lá se foi por S. Paulo, Constantino e Lutero. Houve, porém, nestes interiores do Brasil, uma velha que entendeu melhor do que teólogos e políticos e disse, a quem igualmente entendeu que entenderia, e referindo-se especialmente à missa de vernáculo: «Tiraram-lhe a decença.»
A «decença», que é português ecuménico, consistia em que ela não entendia nada do que se passava na Missa, e assim estava certo, pois Deus é também incompreensível e só o definem e provam a sua existência e lhe discutem os atributos os filósofos a tanto por aula e os teólogos a tanto por eleição. A velha murmura suas rezas e o que lhe vem no murmúrio é não o silêncio dos espaços com espaço que atemorizava o Francês, mas o silêncio dos espaços sem espaço que levitava S. Teresa e a fazia ver, com olhos que não viam, seu amado Jesus; a velha se ajoelha e o tempo que lhe ocorre, se está morta, se viva, quem o sabe, só é tempo para os que estão à volta e querem Missa em português, porque, se não compreendem nada, que vão eles fazer à igreja, e tempo até para o monge medieval do rouxinol, que entender queria no fim de contas; a velha se ergue, e o mistério, em sua alma, foi.
Sei bem que os portugueses foram nautas, mas a náutica lhes demarcava o que já não era mistério, e não valia a pena; sei bem que leram teologia, mas era isso de Coimbra a Salamanca, pois Deus lhes ficava para além, no capricho de pombas em batalha ou de fogaréus de Corpo Santo em temporais de inferno. Talvez Camões, ao desafiar os sábios da escritura, não tenha atacado apenas a física escolástica, que de resto sabia mal, mas tenha lançado um repto mais largo: o de que compete a portugueses na esteira do Gama ir sempre à frente de tais sábios e lhes lançar segredo e lhes lançar mistério como só digno alimento; como só digno alimento de homens, se tais o são.
In Espiral, Ano II – n.ºs 8-9, Inverno de 1965. Do livro:
Agostinho da Silva - Dispersos

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